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Por que chefs famosos estão investindo em fazendas próprias
O escritor José Lins do Rego (1901-1957), cuja obra-prima é o romance “Fogo morto”, dos anos 1940, nasceu na fazenda Engenho Corredor, em Pilar, na Paraíba. Tombada como patrimônio histórico e artístico do estado, nela estão mantidas a casa de engenho, a casa-sede, pintada de cal, e a casa de purgar, na qual o açúcar secava, ao modo dos antigos engenhos.
Hoje, a fazenda pertence à mãe da confeiteira Ana Clóris, que largou a advocacia para se formar em uma escola de pâtisserie na Austrália. De volta ao Brasil, foi pioneira em fazer macarons em João Pessoa, com os quais ganhou projeção nacional.
Para prepará-los, tomou emprestado frutas nativas da fazenda, de onde seu pai volta aos domingos e as traz frescas, recém-colhidas.
Ela faz parte de um universo de cozinheiros que têm recorrido, cada vez com mais frequência, a ingredientes dos quais sabe a origem e o manejo. Em alguns casos, como o dela, isso significa ter a própria produção – e acompanhá-la com proximidade. Essa lógica, que parte da terra, também move chefs a estreitar laços com seus fornecedores para compreender melhor os ingredientes e seus ciclos.
Quando é época, Ana Clóris usa o cajá, uma fruta de casca amarela, fina e lisa, com polpa suculenta e ácida, em um macaron igualmente amarelado, que recebe ganache de chocolate branco e creme de leite fresco, em bom equilíbrio. Este é ensanduichado por casquinhas de macaron, feitas com calda de açúcar, farinha de amêndoa e clara.
“Sinto diferença na qualidade das frutas da fazenda porque são colhidas no ponto certo. As do mercado são tiradas um pouco antes, para amadurecer fora do pé.”
Ao ter acesso aos vegetais de sua horta, mantida em um antigo sítio da família na Granja Viana, Stefan Weitbrecht, do Cozinha 212, em São Paulo, deu novos ares às suas sobremesas. Fez uso do manjericão, por exemplo, em um bolo com caramelo. “Comecei a cultivar produtos a que eu não tinha acesso por meio dos fornecedores, como rabanetes coloridos e beterrabas variadas”, diz o cozinheiro.
“Os vegetais te permitem usar pouca técnica e elevar os ingredientes. Eles se expressam por si só e nos cabe respeitá-los”, diz o chef Pablo
Uma busca semelhante instigou Rafael Costa Silva, do premiado Lasai, no Rio de Janeiro: plantar em sua horta no Vale das Videiras itens que não encontrava no mercado convencional. “Nossa maior fonte de matéria-prima é o circuito de feiras orgânicas de produtores da região serrana do Rio. São os próprios agricultores ou suas famílias que vendem”, diz o chef, que já foi braço direito de um dos mais relevantes chefs do mundo, Andoni Luis Aduriz, do espanhol Mugaritz. “Eles têm produtos muito bons, mas, em geral, são convencionais. De dois anos para cá, a variedade está aumentando.” Isso é resultado, aliás, de uma ação do próprio chef, que forneceu sementes de itens como brócolis-romanesco, couve-flor roxa, vagem amarela e raiz de aipo aos pequenos agricultores.
Com o desenvolvimento de sua horta e de uma pequena criação de cabras e galinhas, Weitbrecht passou a abastecer seu Cozinha 212 principalmente com vegetais, leite e ovos do sítio, no qual seu bisavô criou porcos e fez vinho e hoje lhe serve de moradia.
“Se eu trabalho o cardápio a partir da horta, consigo ajustar a minha demanda. É o ciclo inverso. Primeiro entendo as estações e os ingredientes, para depois fazer uma receita. É muito mais criativo e satisfatório.”
À medida que avança o trabalho na roça, o cardápio do restaurante se concentra mais na estação. É povoado por Weitbrecht com os insumos do sítio – com o leite das cabras, mais magro, ele faz uma ricota densa, que transforma em boursin, e um cheesecake, mais suave.
Também nasce dessa experiência o carpaccio de rabanete. Embora seja um prato muito simples e receba apenas um vinagrete de manteiga, é capaz de mostrar a diversidade de cores, formas e sabores desse produto in natura, que alterna picância e dulçor.
Esse tratamento aos vegetais, que os coloca em lugar de visibilidade, sem muita interferência, também tem sobressaído em cardápios de grandes cozinheiros.
“É mais fácil ganhar uma estrela Michelin do que colher um tomate maduro bom”, diz o chef Rodrigo Oliveira sobre operar um sítio
Dois profissionais são incumbidos de cuidar da horta do chef Rafael Costa e Silva, que fornece ao Lasai produtos sazonais – agora estão colhendo tupinambo, uma alcachofrinha cujo tubérculo é comestível; pepino-melão, “bem pequeno, que parece uma melancia por fora”; tomate mexicano, que se come cru ou tostado, em molho.
Promover o cultivo de ingredientes diferentes dos convencionais reverbera nos cardápios, que recebem lufadas de inventividade. Esse foi um elo entre o produtor Rafael Coimbra, da fazenda Sta. Julieta Bio, no interior de São Paulo, e chefs de cozinha.
“Faço um trabalho muito próximo do chef do Fame. O Marco [Renzetti] me pediu ervilhas frescas e grão-de-bico verde. Às vezes, nem chega na quantidade de um pedido mínimo, mas a gente acorda os preços”, diz Coimbra. O chef Ivan Ralston também tem o costume de comprar o grão-de-bico verde. “Ele conhece o ingrediente, está sempre atento à época de col
Coimbra já testou ainda a produção de minibatatas com o chef César Costa, do Corrutela – “ela não é só pequena, é jovem também”, explica o produtor, que já atendeu a pedidos de Alex Atala, que lhe pediu bertalha, uma planta alimentícia não convencional, e de Bela Gil. Ela me deu umas mudas de peixinho, a gente plantou, fez testes e hoje temos colheita regular e muitas vezes a gente entrega para ela no Camélia Òdòdó. É um exemplo legal de como o ciclo se fecha.”
Coimbra diz que quando a comunicação é estabelecida com os compradores dos restaurantes, e não diretamente com os cozinheiros, fica mais difícil de alinhar as expectativas. “A gente não consegue ter muitos itens por muito tempo e isso atrapalha o abastecimento constante de restaurantes.”
David Ralitera, um francês que também se instalou no interior de São Paulo, na fazenda Santa Adelaide, já experimentou desenvolver produtos sob demanda, como alcachofra e aspargos. A tentativa não foi tão bem-sucedida, pois a agricultura tem um tempo singular, mas a relação que ele estabeleceu ao longo de 12 anos com os chefs de cozinha é frutífera. A Santa Adelaide, certificada como orgânica pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, foi uma das primeiras fazendas fornecedoras de restaurantes estrelados na capital. “A maioria dos agricultores trabalha com os clássicos do hortifruti. Aqui, trabalhamos só com produtos da estação, muitas vezes esquecidos, e plantas nativas da Mata Atlântica”, diz Ralitera.
Um dos pilares da Santa Adelaide, além do sazonal e local, é que todos os produtos cultivados na fazenda podem ser rastreados. São itens como cará, taioba, batata-doce e variedades diversas de cenoura, beterraba e cebolas.
“O Pablo [Inca] é um exemplo de uma dinâmica ultrapositiva. Ele quer conhecer o bastidor da planta, valoriza o produto.” O chef do restaurante Cora, que celebra a urbanidade no centro de São Paulo, faz um cardápio fresco, construído a partir dos ingredientes que tem à mão. “Os vegetais te permitem usar pouca técnica e elevar os ingredientes a um patamar de sabor e complexidade. Eles se expressam por si só e nos cabe, como cozinheiros, respeitá-los. Quando uso vegetais, não tento disfarçá-los, mostro como eles são”, diz Pablo.
Ele esteve pessoalmente na fazenda para aprender mais sobre o espaço, sobre as pessoas que estão por trás de cada ingrediente e seus respectivos trabalhos. “É importante saber a origem das coisas. Isso faz parte do nosso trabalho, não é uma novidade, nem um movimento. É uma relação íntima com quem estou comprando, uma forma humilde de colaboração recíproca.”
Com essa condução, Pablo cria pratos a partir da oferta da época. Trocou, por exemplo, a couve-flor que guarnecia o coração de pato por pastinacas, “uma raiz de uma cor branca, adocicada e com sabor de especiarias”, com as quais faz um creme.
Também explora rabanetes, como na salada que os combina com maçã, salsão, queijo de ovelha e romã, e beterrabas, acomodadas num prato com coalhada, zaatar e ervas. “São beterrabas amarelas, vermelhas, uma listrada com aros brancos e rosas, meio psicodélicos.”
São vegetais mais comezinhos os usados pela chef mineira Mariana Gontijo, do Roça Grande, em Belo Horizonte, embora ela parta do mesmo princípio de Pablo – observa os ingredientes disponíveis para depois dar serventia a eles na cozinha.
O conceito de seu restaurante – do campo à mesa – nasce do incômodo em relação à comida desperdiçada na roça do pai, no cerrado mineiro. Geraldo Gontijo se aposentou e foi morar no sítio que pertenceu aos bisavós de Mariana. Ali foi mantido um pomar com 70 pés de jabuticaba e uns pés de manga. Hoje, ele produz mandioca, milho crioulo, couve, salsinha, outros insumos de horta, e cria galinhas. São esses produtos que abastecem a cozinha do Roça Grande, às vezes complementados com insumos de produtores vizinhos. “A única forma de cozinhar que faz sentido é sazonal e sustentável. O conceito do campo à mesa é apenas a réplica do que eu aprendi a vida inteira, de aproveitar o máximo dos alimentos de cada época”, diz a chef.
Com a mandioca do sítio, ela prepara vaca atolada, purê, mandioca frita e cozida. Ela também vira farinha e polvilho. A manga se desdobra em mangada, feita como os doces tradicionais, e em chutney. Este também é feito com a jabuticaba, que acompanha com carne de porco na lata, pernil e lombo. A mesma fruta lhe rende compotas e geleias. Abóbora vira conserva, doce e purê. Com os ovos de galinha caipira faz bolos, pão de queijo, broas – e ele mesmo é frito em banha de porco e servido sobre os pê-efes, se for do gosto do freguês.
“Compro basicamente farinha de trigo, óleo, açúcar e sal. Meu sonho é conseguir o arroz do MST para ficar cada vez menos dependente da indústria”, diz Gontijo.
Diminuir a quantidade de insumos industrializados é uma utopia perseguida por chefs deste século XXI, que voltam a um modelo do passado, no qual o respeito pela sazonalidade é óbvio e o desperdício mínimo, idem.
A chef belo-horizontina Bruna Martins faz a mesma tentativa. Ela abastece seu Florestal, cujo cardápio eleva os vegetais ao auge, com o máximo possível de insumos da agricultura familiar – não só os de hortifruti como também produtos secos.
Hoje, boa parte dos ingredientes que Martins usa são do sítio de seu pai, que toda semana vai a Pará de Minas recolher verduras, legumes, ovos e carne de porco para levar aos restaurantes da filha – no Birosca, a chef homenageia a cozinha caseira e doméstica das mulheres.
Ela faz, por exemplo, uma canja de porco, com a carne desfiada, deitada em um caldo rico, com arroz e vegetais. Ainda não usa o porco de criação própria, no entanto, quando requer cortes mais precisos, como o caso da bochecha. Martins a doura na própria banha e a serve com um molho de amendoim com cheiro-verde, coentro, pimentão-verde e limão, num equilíbrio entre ácido e terroso.
Com a intenção de tornar as entregas mais regulares – em qualidade e frequência -, Martins passou a investir no sítio em uma horta própria. Hoje viçosa, ela habita o que outrora fora um campo de futebol, cheio de pedras. O processo de adubação, plantio e colheita é orquestrado pelo engenheiro ambiental João Marcelo Diniz.
Na atividade rural há muitos anos, o jovem pratica uma agricultura sustentável e dispensa o uso de químicos. Ele promove, por exemplo, consórcios. São canteiros que recebem duas plantas diferentes, geralmente uma de ciclo curto e outra de ciclo longo, com a rúcula e a acelga. “Assim, a gente aproveita mais a adubação, a irrigação, a mão de obra, traz biodiversidade e dá equilíbrio ao plantio, que fica protegido de pulgão, formiga, mosca branca”, diz o engenheiro. Com extratos vegetais, como o de pimenta, de alho e de cebola, afugenta outras pragas.
No caso do Florestal e do Birosca, o ciclo se fecha. O resto orgânico dos restaurantes volta ao sítio e se presta a adubar a terra e a alimentar os porcos.
Na criação de Jefferson e Janaína Rueda, os animais são tratados a pão de ló. Os porcos são alimentados com cenouras, capim, beterraba, milho triturado e soro de queijo de uma produção vizinha e resultam numa carne com personalidade, usada n’A Casa do Porco, eleito o sétimo melhor do mundo pelo ranking 50 Best Restaurants.
O Sítio Rueda, em São José do Rio Pardo (SP), reproduz a engrenagem das pequenas unidades produtivas e autossuficientes gestadas depois da queda da mineração, nas quais se consolidou a culinária caipira. O galinheiro fornece adubo para a horta, da qual se aproveitam os descartes para alimentar os animais. Com o tratamento de efluentes, a água é devolvida límpida à natureza, depois de filtrada por um círculo de bananeiras, que opera como uma bomba.
Mais do que fornecer insumos ao restaurante e provocar a criatividade dos chefs, que acham possível fazer uma cozinha mais poética em contato com a terra, o sítio desempenha o papel de um laboratório. Ali, cozinheiros terão a experiência completa do ciclo da agricultura, da postura de ovos, da engorda e da matança dos porcos. Pretende-se, com essa consciência, que haja menos desperdício e mais respeito no trato com os ingredientes.
A perspectiva de Rodrigo Oliveira e Adriana Salay, do Mocotó, em São Paulo, é outra. Com o sítio que compraram na pandemia, eles pretendem entender mais profundamente como é feita a comida. “Restaurante não faz comida, processa produtos que são cultivados, coletados, pescados por outras pessoas”, diz o chef. “Mesmo a gente estando próximo dos nossos fornecedores, é muito diferente de viver isso no dia a dia.”
Com o investimento inicial que fizeram na área, outrora degradada pela pastagem, eles restauraram o galinheiro, um pequeno curral, duas estufas, um pomar de frutas nativas, outro de frutas cítricas e um pequeno cafezal. Numa força-tarefa, plantaram mais de mil árvores em duas semanas de novembro entre nativas, frutíferas, árvores de madeira, selecionadas dentro do conceito de agrofloresta, no qual vai operar o sítio.
“A primeira grande descoberta é que é mais fácil ganhar uma estrela Michelin do que colher um tomate maduro bom”, diz Oliveira, que conjuga as plantações com pequenas criações de vacas leiteiras (duas no total) e de cordeiros – “já abatemos dois e a qualidade é excepcional”.
Em breve, serão 200 galinhas a fornecer ovos ao Mocotó. Inspirado pela primeira leva, o chef lançou a “mocshuka”, em referência à shakshuka, com especiarias e riqueza de sabor. Os ovos acabam o cozimento ao serem acomodados em um molho rico de tomates frescos, condimentado com coentro, páprica, cúrcuma, pimenta, cebola, pimentão, de modo que a gema resulta supercremosa e a clara cozinha ligeiramente, também agregando uma camada de textura ao prato, que recebe em sua finalização torresmo picado por cima. O “mocshuka” chega à mesa na companhia de pão da casa, de fermentação natural, feito diariamente – e gostoso de chuchar.
Oliveira já testou outras receitas com insumos do sítio, ainda no campo experimental. Ele desconhecia a abóbora-caravela, por exemplo, que é gigante, doce e suculenta, e com ela fez um steak. “Ela é tão carnosa que a tratamos como a carne de sol, uma cura salgada, na geladeira, e finalizamos com manteiga, alho e ervas na frigideira. Em breve vamos lançar o bife de abóbora.”
O sítio serve ao chef para ter acesso a produtos de excelência e a insumos que não encontra com facilidade no mercado, mas a principal meta é “conquistar uma linguagem, um vocabulário que nos permita dialogar com essas pessoas que realmente fazem comida. É uma maneira de nos aproximar”.
A primeira relação de Rodrigo Oliveira com a terra foi estabelecida em uma fazenda de sua família no sertão pernambucano, cujo negócio sempre foi gado de leite. Desde que o chef assumiu o comando, foi feito o plantio de mais de 50 hectares de mandioca. A mandioca colhida é processada numa casa de farinha vizinha – e a primeira tonelada de farinha chegou em novembro ao Mocotó.
“A fazenda não tinha nome, e a batizamos de fazenda Maniva, que é a galhada da mandioca que gera a nova mandioca. E a mandioca é muito simbólica para a gente e para o Brasil. É o alimento das vacas, da gente, e é o que resiste à seca e garante segurança e soberania alimentar.”
Também fica no Nordeste a fazenda do chef Hervé Witmeur, que nasceu na Bélgica, veio ao Brasil velejar e se estabeleceu com sua mulher Marie em Barra Grande, pequeno vilarejo turístico no litoral do Piauí, onde abriu o restaurante La Cozinha, que agrega seis bangalôs para hospedagem.
Hoje, o casal divide a atenção com o Éllo, restaurante que inaugurou em Jericoacoara, no Ceará, com uma cozinha elegante, que transita entre o Brasil e a França e faz ótimo uso de peixes e frutos do mar frescos.
Foi diante das dificuldades que Witmeur tinha para abastecê-los que ele investiu em uma fazenda orgânica, a La Reserva, em Parnaíba, cuja terra é irrigada pela água do delta do rio Parnaíba. O terreno de areia, arredio, recebeu um tratamento intenso para se tornar produtivo. Com depósito de matéria orgânica para criação do solo, hoje a fazenda fornece itens como banana, acerola, cupuaçu, cacau, coco, ora-pro-nóbis e macaxeira.
Na área, também se planta cúrcuma e moringa, superalimentos que são explorados em um laboratório próprio, que desenvolve cosméticos e cápsulas nutricionais.
“O trabalho na fazenda estimula muito a criatividade da cozinha e o trato com os ingredientes. A falta de fornecimento regular mudou minha percepção como cozinheiro e a minha relação de respeito com os produtos”, diz Witmeur. “Minha cozinha é mais simples, com menos interferências e sempre tem pratos vivos.”
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