‘Cheque em branco’ de centenas de bilhões está em jogo no projeto do governo para venda de petróleo

Para analistas, deveria haver debate sobre destino dos recursos

Plataforma de petróleo P-67 ancorada na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Plataforma de petróleo P-67 ancorada na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

O projeto de lei (PL) que o governo federal enviou ontem ao Congresso Nacional autorizando a vender o excedente de óleo e gás a que tem direito nos contratos de partilha vai antecipar receita futura incerta e pode representar “cheque em branco” relacionado a aumento importante de recursos que deveriam ter sua destinação debatida, apontam economistas. A medida alcança receita que pode somar R$ 332,1 bilhões no período de 2023 a 2030, em valores de 2021, considerando barril do Brent a US$ 65 a partir de 2024. Equivale a 3,8% do PIB de 2021.

O cálculo é do economista Bráulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), com base nas receitas da União com o chamado óleo-lucro. Estabelecido quando criado o regime de partilha, em 2010, o óleo-lucro é a parte que o governo federal deve receber sobre extração de petróleo e gás natural.

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Como a fatia de produção no regime de partilha deve aumentar, a receita de óleo-lucro, que foi de apenas R$ 1,2 bilhão em 2021, pode chegar a R$ 92,26 bilhões em 2030, o equivalente a 0,9% do PIB. A estimativa é de que em 2030 dois terços da extração de petróleo do Brasil serão no regime de partilha.

Reportagem do Valor de segunda, 6, mostrou que o óleo-lucro vai contribuir para dobrar a receita bruta da União com o setor extrativo mineral até 2030 em comparação ao período entre 2011 e 2020.

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É a receita do óleo-lucro que pode ser antecipada pelo governo federal pela proposta divulgada ontem, diz Borges. Ele alerta, porém, que essa medida estabelece a antecipação de arrecadação incerta. “Além de haver grau de contingência envolvido, essas receitas começaram a se materializar no ano passado, mas passarão a ganhar mais relevância na segunda metade desta década.”

Ou seja, está se falando em antecipação de receitas que ainda virão de forma mais significativa a partir de seis a sete anos à frente, diz Borges. Suas projeções consideraram as previsões de produção divulgadas pela PPSA, a estatal responsável pela comercialização da parte da União no petróleo e gás produzidos no pré-sal.

Hoje, ressalta Borges, essas receitas estão vinculadas à saúde e educação. O projeto, segundo divulgação do governo, pretende desvincular também a arrecadação, o que denota a intenção de “uso eleitoreiro”, avalia. “O uso que parece se pretender é ter receita livre, descarimbada, em pleno período eleitoral para poder desonerar, já que o teto de gastos limita despesas.” Para isso, porém, lembra, o governo precisa aprovar a lei e fazer os leilões para venda do excedente.

O economista lembra ainda que ao fim de 2021 a flexibilização no teto de gastos da União envolveu o adiamento da despesa com precatórios. Essa conta, lembra, deve ser paga em 2027. Se houver antecipação de receitas, essa despesa virá de uma só vez e há risco de o governo federal não ter mais o acréscimo de arrecadação que o aumento de produção de petróleo pelo regime de partilha permite projetar.

Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do Ibre, aponta que toda antecipação de receita é uma forma de antecipar resultado fiscal ou de antecipar recursos para financiar despesas. “Combinando a despesa postergada com precatórios e a antecipação de receitas [prevista no projeto de lei], o conjunto da obra pode criar uma ilusão fiscal, dando ideia de que o quadro é melhor do que é estruturalmente, o que pode gerar surpresas negativas ao longo do tempo e dificultar a vida dos próximos governantes.”

Pires lembra ainda que o crescimento de receitas que se espera do setor extrativo mineral deve trazer arrecadação temporária, baseada em recursos finitos. A ideia do uso da receita extraordinária, explica, deve ser a de tentar tornar o recurso extra mais perene, alongando seus efeitos, “fazendo ele durar mais”. Ao antecipar receitas extraordinárias, tende-se a torná-las menos perenes, “despoupando para poder consumir”.

Caso essa antecipação fosse aplicada para abater dívida pública, melhorando a solvência fiscal imediatamente, o que reduziria os juros longos, o custo de rolagem da dívida e a própria dinâmica da dívida/PIB, talvez fosse algo meritório, pondera Borges. “Contudo, o que se sugere é que eles querem um cheque em branco mesmo.”

O PL que autoriza a União a vender o excedente de óleo e gás a que tem direito nos contratos de partilha “aproveita a ocasião de alta expressiva nos preços do petróleo para maximizar a receita pública”, segundo comunicado do Ministério da Economia de ontem.

“Trata-se de uma oportunidade de monetização do petróleo e gás natural, que são patrimônio do povo brasileiro, em momento oportuno em que o preço do barril chegou ao maior valor dos últimos dez anos e há forte demanda por esse produto no mercado”, diz.

Sergio Gobetti, especialista em contas públicas, destaca que a monetização das receitas futuras não se dará pelo valor atual das cotações de petróleo, mas por uma média, e que por isso não é possível avaliar com certeza se é um bom negócio para o governo. Ele lembra que para o investidor há riscos e incertezas relacionados ao volume de produção e aos preços. “Do lado do investidor certamente existe muita precaução. É preciso ver se isso não vai se traduzir em um mau negócio para o governo e para a sociedade.”

Para Gobetti, é curioso que se alegue a vantagem de antecipar receitas futuras num momento em que representantes do governo federal frequentemente fazem alusão à evolução favorável das receitas da União. Para ele, um debate mais apropriado seria o “windfall tax”, pelo qual se poderia tributar mais o lucro de setores que estão elevando seus ganhos com a alta das cotações de petróleo. Essa poderia, diz ele, ser uma tributação variável que considerasse a volatilidade dos preços.

Segundo o Ministério da Economia, a cessão de direitos da União só poderá se concretizar “se houver anuência do consórcio operador do respectivo contrato”. O objetivo da regra é “garantir o respeito aos contratos de partilha e a segurança jurídica da transação”.

A pasta ainda esclarece que as receitas obtidas “não estarão vinculadas ao Fundo Social”. “Essa medida é importante porque, caso mantida essa vinculação, haveria ineficiência na gestão fiscal”, diz o ministério, afirmando que, “dado o volume de recursos esperados, eles não teriam contrapartida de previsão de despesas no Orçamento”.

“Porém, não haverá qualquer prejuízo à execução das políticas públicas abrangidas pelo Fundo Social, uma vez que os recursos serão alocados normalmente no Orçamento público conforme as prioridades definidas pelo Congresso Nacional”, diz o ministério.

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