Em busca de um regime fiscal
É mais prudente ter um regime que reduza a dívida ao nível de países semelhantes, e não apenas a estabilize
Um grande número de países de renda média, como o Brasil, e alta, como os Estados Unidos, segue regimes monetários bastante similares. Trata-se usualmente de variações, limitadas, em torno da combinação de política monetária voltada para o atingimento de metas numéricas para a inflação e taxa de câmbio flutuante. Os arranjos de política fiscal são muito mais heterogêneos, talvez porque a área fiscal seja a mais política das políticas econômicas.
Durante um longo período, a política fiscal brasileira era centrada em uma meta para o superávit primário do setor público consolidado. A lógica era que o país deveria gerar um superavit primário suficiente para estabilizar a dívida pública ao longo do tempo. Esse arcabouço começou no âmbito de programas de socorro junto ao FMI, foi consolidado pela legislação do início do século, notadamente a Lei de Responsabilidade Fiscal, e continua presente nos processos da política fiscal, como a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Entretanto, enquanto meta e métrica central da performance fiscal, o superávit primário perdeu muita relevância desde meados da década passada.
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Especificamente, a partir de 2016, o principal pilar da política fiscal, estabelecido pela emenda 95 à Constituição, é o chamado Teto de Gastos. A meta para o resultado primário ainda existe, mas em papel bem secundário. O próprio teto foi, contudo, flexibilizado nos últimos anos, o que suscita uma discussão, nos mercados e na academia, sobre o futuro do regime fiscal brasileiro.
Uma alternativa natural, nesse tema como em muitos outros, é simplesmente voltar ao passado. Isto é, restaurar a centralidade da meta de primário dentro do arcabouço de política fiscal. Essa opção, em minha opinião, embute sérios problemas.
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Um deles, já amplamente reconhecido, é que a meta de primário implica um comportamento pró-cíclico das despesas públicas. Em momentos de aquecimento econômico, as receitas tendem a crescer mais rapidamente, e isto, todo o resto constante, permitiria um aumento de gastos públicos, de forma a manter o resultado primário.
Pior, esse tipo de ajuste pode originar problemas ao longo do tempo. Se o aumento de receitas está associado a um aumento de preços de matérias primas, por exemplo, de natureza temporária, e o correspondente aumento de despesas assume a forma de transferências sociais ou outros gastos de difícil reversão, sobretudo em um orçamento excessivamente indexado, a tendência será de redução progressiva da capacidade de gerar superávits fiscais ao longo do tempo.
A princípio, um regime centrado no superávit primário é agnóstico quanto ao tamanho da ação estatal na economia, medido (talvez de forma muito estrita) pela razão entre gastos e PIB. Mas o regime não impõe grandes barreiras a uma hipertrofia do Estado, exceto indiretamente, quando surgem resistências ao aumento da carga tributária. Colocando de outra forma, nesse regime, havendo como elevar a receita, os formuladores de política fiscal e a classe política são pouco incentivados a priorizar despesas.
As metas foram ajustadas em dez ocasiões, em dezesseis anos, sendo aumentadas duas vezes e reduzidas em 8 vezes. As alterações de meta não seguiram parâmetros homogêneos, resultaram basicamente de decisões discricionárias do poder Executivo. Isso ocorreu a despeito dos abatimentos que foram introduzidos no cálculo do resultado primário a partir de 2006, usualmente associados a investimentos, e cuja amplitude atingiria um máximo entre 2010 e 2014.
Os abatimentos correspondiam a apenas 1% do total de gastos primários em 2006, atingiram 5% do total em 2010 e um máximo de 8% em 2015. O histórico de abatimentos diversos, a definição da meta para o ano imediatamente seguinte e a ausência de qualquer contrapartida no caso de mudança da meta durante o exercício orçamentário apontam para um regime fiscal de baixa previsibilidade, o que não ajuda a diminuir o prêmio de risco para horizontes mais longos.
Além disso, o regime teve sucesso limitado. Pode-se argumentar que o país, a despeito de momentos de estresse, especialmente em 2002 e 2015, não viveu uma crise da dívida interna durante o período em que perseguiu, com esforço variável, uma meta para superávit primário. Mas a dívida bruta tampouco foi estabilizada: saiu de 47,8% e 65,6% do PIB, nos conceitos do BC e do FMI, respectivamente, em 2000, para 69,8% e 78,3% em 2016, ou seja, um ritmo de crescimento anual médio de 1,4 ou 0,8 pontos percentuais do PIB, dependendo do critério a ser utilizado.
Atualmente, temos uma razão dívida-PIB de 80,3% (93% para o FMI), ante uma média de 65% para países emergentes de grau semelhante de desenvolvimento. Como a pandemia demonstrou, ativar a política fiscal para responder a choques, algo que pode ser imperativo para manter um mínimo de coesão social, tende a desencadear uma nova rodada de elevação da da dívida.
Assim, o mais prudente, reconhecendo que o país já tem uma dívida muito elevada e que vivemos em um mundo perigoso, seria adotar um regime que, em um primeiro momento, busque reduzir a dívida ao patamar típico observado entre países semelhantes e não meramente estabilizá-lo – e, a julgar pela experiência histórica, nem isso a meta de superávit primário foi capaz de conseguir.