Fernando Abrucio: Bolsonaro é um risco geopolítico

Não é só incompetência e ignorância, é um sistema cuja ideia é criar um modelo político similar à Rússia de Putin e à Hungria de Orbán

— Foto: Daniel Caballero
— Foto: Daniel Caballero

A evolução do governo Bolsonaro é a criação de uma série de riscos ao futuro do país. Para quem conhecia minimamente a história do deputado que defendeu o fuzilamento do ex-presidente Fernando Henrique e que disse que a ditadura deveria ter matado pelo menos mais 30 mil pessoas, o risco democrático já estava na mesa desde a posse. De lá para cá, o cenário tornou-se mais perigoso, seja porque a ameaça à democracia é renovada quase toda semana, seja em razão de outros riscos terem sido incluídos nessa lista.

O mais danoso deles deriva da última viagem desastrosa à Rússia: o presidente colocou o Brasil sob risco geopolítico em suas relações com o Ocidente. Esse posicionamento pode custar anos de isolamento político e piora no cenário econômico.

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Neste momento, vale lembrar uma frase dita por Bolsonaro em sua primeira viagem internacional, em março de 2019, não por acaso uma visita a seu guru, Donald Trump. A frase é o resumo lapidar do projeto do bolsonarismo: “O Brasil não é um terreno aberto onde pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa”.

Sob esse lema, tentou-se mudar tudo o que foi possível naquilo que fora construído em governos de partidos diferentes como base de um projeto de país a partir da redemocratização. Entraram aqui o funcionamento da democracia, das políticas públicas, mais recentemente da estabilização econômica, e agora consolida-se uma mudança na política externa, que aprofunda o isolacionismo e vai além: nos coloca, de forma inédita, contra os principais aliados históricos.

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É preciso entender as partes e sua junção sistêmica que desagua no risco Bolsonaro. O primeiro elemento é o do risco político-democrático. A ameaça à democracia tem duas serventias ao bolsonarismo. De um lado, o autoritarismo é um valor profundo dos bolsonaristas, influenciados por um movimento internacional de populismo autoritário e por sentimentos enraizados na sociedade brasileira contrários à igualdade entre as pessoas.

De outro, jogar contra as instituições é também uma estratégia política para manter todo o sistema político acuado, dificultando sua reação contra os erros governamentais e os escândalos da família Bolsonaro.

As duas partes do risco democrático bolsonarista afetam o futuro do país. Aquela referente aos valores pode significar que ao menos uma parcela de 15% a 20% do eleitorado brasileiro abraçaria essa visão de mundo, de modo que, quaisquer que sejam as mudanças de governantes no futuro, eles terão de lidar com um grupo barulhento e disposto a dificultar o funcionamento das instituições democráticas brasileiras.

Já o uso estratégico da ameaça à democracia pode ser uma arma contra qualquer resultado contrário à reeleição do presidente Bolsonaro. Daí virão os métodos de fake news, amedrontamento da população mais conservadora, atiçamento das Forças Armadas e outras maneiras de tornar o pleito presidencial uma batalha final.

O risco democrático bolsonarista, em resumo, vai gerar uma disputa presidencial muito tumultuada, com incertezas sobre o cumprimento dos resultados das urnas. E mesmo se reeleito, é bom frisar: Bolsonaro continuará atuando tanto sobre o terreno dos valores como na estratégia de ameaça à democracia. Por essa razão que a dupla viagem à Rússia e à Hungria serviu mais ao presidente do que ao país, como disse o cientista político Guilherme Casarões.

A visita feita aos presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da Hungria, Viktor Orbán, foi para entender como eles conseguiram ficar tanto tempo no poder, tornando-se autocratas populistas, sem precisar dar um clássico golpe de Estado. Esse é o horizonte político desenhado pelo bolsonarismo ao buscar a reeleição.

O segundo risco criado por Bolsonaro é o da destruição do federalismo da Constituição de 1988, buscando tornar os governos subnacionais subservientes à União, mas ao mesmo tempo reduzindo o papel do governo federal no combate às desigualdades territoriais, colocando a culpa nos governantes locais de todos os problemas do país. Essa equação é paradoxal, porque ela, ao mesmo tempo, torna Brasília um poder inconteste e irresponsável.

O objetivo final do bolsonarismo é reduzir qualquer controle político vindo da Federação e transformar estados e municípios em meras correias de transmissão das decisões tomadas no Palácio do Planalto.

Na mesma linha destrutiva, instalou-se um risco à organização autônoma e republicana da administração pública brasileira. Esse terceiro aspecto passa pelo enfraquecimento e/ou colonização da maioria dos órgãos do governo federal, como a Funai, o Ibama, a Embrapa, a Polícia Federal, os equipamentos da cultura, para citar uma pequena (mas relevante) parte desse desmonte patrimonialista e autoritário.

A guerra com a Anvisa foi um exemplo clássico do risco bolsonarista aqui: o Ministério da Saúde enfraqueceu as decisões científicas o quanto pôde, algo que, no mínimo por leniência, acarretou milhares de mortes por covid-19 no país. No fundo, Bolsonaro não suporta ter servidores públicos autônomos, pois ele quer ter subordinados do governo. Ressalte-se que nenhum país conseguiu se desenvolver democraticamente sem um corpo de funcionários públicos profissionais, especialistas e com capacidade de resistir a ordens ilegítimas e desastrosas.

O enfraquecimento das políticas sociais é o quarto risco colocado ao país desde que Bolsonaro chegou ao poder. A educação foi completamente escanteada pelo próprio MEC, mesmo quando a pandemia exigia que o governo federal ajudasse estados e municípios a enfrentar esse enorme desafio. O retrocesso educacional em quatro anos de poder será muito profundo, de maneira que será necessário mais do que um mandato presidencial para corrigir todos os erros cometidos.

A política sanitária também foi muito afetada pelo descalabro bolsonarista, embora o SUS tenha tido resiliência suficiente para evitar o pior – se não fosse esse sistema e seus abnegados profissionais, além dos governos subnacionais, teríamos hoje mais de 1 milhão de mortes por covid-19.

O resultado do risco social atrelado ao bolsonarismo foi o aumento da desigualdade em proporções que não víamos há décadas. Os números dizem isso, as ruas das grandes cidades gritam isso. Distribuir o Auxílio Brasil é necessário neste cenário, mas para mudar tal panorama é preciso ter as políticas que Bolsonaro abandonou – educação, saúde, cultura,habitação, assistência social, direitos humanos e políticas urbanas.

A política ambiental desastrosa é uma marca do governo Bolsonaro. Esse problema traz um quinto risco profundo para o país, uma vez que não só afeta questões internas, contribuindo para aumentar a instabilidade climática que tem graves efeitos econômicos e sociais, como também gera um impacto negativo no plano internacional.

É necessário dizer em alto e bom som: o Brasil deixará de receber investimentos externos (na verdade, já está deixando de receber) e sofrerá sanções econômicas caso não altere a forma como o Ministério do Meio Ambiente bolsonarista tem atuado.

Essas sanções podem ser sobre produtos, mas também se expressar como veto a qualquer acordo ou entrada em organismo externo que possa nos beneficiar. Dito de outro modo: enquanto o bolsonarismo estiver no poder, a questão ambiental irá impedir a entrada na OCDE e qualquer acordo com a União Europeia.

No final do governo, surgiu uma novidade em relação ao discurso original do bolsonarismo, que aparentemente delegaria a economia ao liberalismo de Paulo Guedes. O populismo autoritário de Bolsonaro sempre limitou esse poder, mas desde o final do ano passado acabou de vez com qualquer ilusão quanto à força do Posto Ipiranga.

A PEC dos Precatórios, as emendas secretas, os novos abatimentos de dívidas e renúncias tributárias, além de todos os prováveis atos populistas que devem vir nos próximos meses, comprovam um grande risco à estabilidade econômica de longo prazo do país.

Todos os riscos anteriores, sozinhos ou somados, são muito graves. Porém, algo muito pior foi criado com o posicionamento de Bolsonaro na viagem à Rússia: o Brasil já não é mais considerado pelos Estados Unidos e pela Europa como um parceiro preferencial, e poderá, no limite, ser isolado e sofrer sanções por essa postura.

Como esse conflito deve redesenhar a disputa entre as grandes potências do planeta, a situação atual só tem paralelo na década de 1930, quando Vargas teve que escolher um dos lados da Guerra Mundial. Imagine qual seria nosso destino se o varguismo tivesse optado pelos alemães. Agora imagine qual pode ser nosso futuro se o Brasil não for considerado um aliado do Ocidente nos próximos anos…

O risco geopolítico criado por Bolsonaro não é só incompetência e ignorância política. Ele é a parte final de um sistema cuja ideia reguladora é criar um modelo político similar à Rússia de Putin e à Hungria de Orbán no Brasil.

Esse é o risco maior que os eleitores devem levar em conta, até porque isso não será apenas um retrocesso democrático, mas também nos colocará no lado que perderá os bônus econômicos da parceria ocidental, sem que tenhamos qualquer aliança com o bloco que será comandado pela China, pois o bolsonarismo não suportaria uma aliança estratégica com os “comunistas” que tanto xingam nas redes sociais.

Texto originalmente publicado por Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, no caderno Eu &, de 25/02/2022. Ele escreve no espaço quinzenalmente.

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