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‘O Ocidente não deu ouvidos a Vladimir Putin’, diz o enxadrista russo Garry Kasparov
Para o enxadrista russo Garry Kasparov, 58 anos, o ataque à Ucrânia, no dia 24 de fevereiro, não deveria ter sido uma surpresa, já que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, opera há anos uma política expansionista, que tem por objetivo ‘reconstruir o império russo’.
“O desfecho do conflito irá definir as novas regras do tabuleiro geopolítico global”, disse Kasparov, na segunda-feira (21), em uma live, transmitida pelo Youtube, promovida pela Itaú Asset. A conversa foi moderada por Eduardo Câmara Lopes, chefe de investimentos da casa, e Giovanni Vescovi, que além de gestor de fundos da Asset, é também enxadrista, detentor do título de Grande Mestre Internacional, desde 1998.
O enxadrista russo, conhecido como “a Fera de Baku”, por ter nascido na cidade de mesmo nome, no Azerbaijão, em 13 de abril de 1963, dominou o esporte entre 1985 (ano em que se tornou o mais jovem campeão mundial, aos 22 anos) e 2000. Desde a sua aposentadoria no torneio de Linares, na Espanha, em março de 2005, o ex-campeão mundial se tornou uma pedra no sapato do presidente Putin e um símbolo da oposição na Rússia.
Ao longo da última década, Kasparov tentou se candidatar à presidência da Rússia, chegou a ser preso em duas ocasiões em protestos contra o Kremlin, fez centenas de palestras e publicou dezenas de artigos alertando para a ameaça que Putin representa para o planeta – ameaça muito pior, afirma, que o Estado Islâmico.
Ele radicou-se em Nova York e hoje é conselheiro da Human Rights Foundation, ONG de atuação global, que trabalha na promoção e proteção dos direitos humanos. Ele também é autor do livro “Winter is Coming – Why Vladimir Putin and the Enemies of the Free World Must Be Stopped” (“O inverno está chegando – Por que Vladimir Putin e os inimigos do Mundo Livre precisam ser contidos”; 290 páginas, Editora Public Affairs).
Na conversa com Câmara Lopes e Vescovi, Kasparov recapitulou a trajetória de Putin, como agente da KGB e sucessor quase acidental de Boris Iéltsin (primeiro presidente da Rússia após o fim do comunismo). Kasparov também criticou o Ocidente, que segundo ele, fez muito pouco para evitar que a Rússia saísse do comunismo para cair em uma nova forma de autoritarismo, permitindo a ascensão de uma verdadeira Máfia de Estado.
Para Kasparov, há uma manipulação continuada da população russa, por meio de uma propaganda estatal maciça, que procura desviar a atenção da crise econômica crescente, apela para o orgulho nacionalista, e se alimentando de conflitos como o atual, na Ucrânia. Tudo isso, diz ele, tirando proveito da complacência da comunidade internacional.
“Putin nunca reconheceu a Ucrânia como um Estado soberano. Este é um momento crucial na história do mundo. A Ucrânia é a melhor chance que temos de derrotar a máquina de guerra russa. E é por isso que não podemos desperdiçar esta oportunidade”, disse Kasparov.
Leia a seguir trechos editados da conversa de Kasparov com Câmara Lopes e Vescovi.
Motivação para lutar contra o autoritarismo de Putin
“Percebi desde cedo a distância entre a realidade e a propaganda. Minha primeira viagem ao exterior, à França, foi aos 13 anos. Eu tive o suporte de familiares e li muitos livros que não estavam disponíveis nas bibliotecas de meu país. Quando terminei a escola, já tinha uma ideia muito clara do que era certo e o que era errado, do ponto de vista ideológico. Ainda assim, essa era uma preocupação secundária. Tudo o que importava para mim, naquele momento da vida, era me tornar um campeão mundial de xadrez. Questões políticas eram periféricas. No entanto, o contexto era maior do que os atores. Os jogos com Karpov (Anatoly Karpov, grande mestre de xadrez russo, campeão mundial de 1975 a 1985 e de 1993 a 1999), carregavam um simbolismo político enorme, dado que ele era defensor do regime comunista e eu um jovem aspirante, de uma república russa separatista. Antes de superar Karpov no tabuleiro, eu tive de vencer outros obstáculos para chegar ao Olimpo do xadrez. Afinal, eu era visto como um jovem aspirante, de uma república russa. Quando me tornei campeão mundial, aos 22, passei a ser ouvido e pude expor minhas crenças.”
Adesão ao movimento democrático na Rússia
“No começo do governo Gorbatchov (Mikhail Gorbatchov, ex-presidente da União Soviética), com a Perestroika, acompanhei o crescimento do movimento democrático na Rússia. Foi então que senti que havia espaço para me expressar e me juntei ao movimento desde o início. Aos 24, já estava engajado em promover os valores democráticos, como a liberdade de expressão, na antiga União Soviética. Em 1991, acompanhei o colapso do bloco soviético e pensei: ‘agora posso me concentrar no xadrez’.”
Ascensão de Putin
“Assistir a Vladmir Putin assumindo a posição de Iéltsin (em 16 de agosto de 1999, Vladimir Putin foi eleito Primeiro-Ministro da Rússia com 233 votos, e Boris Iéltsin apontou-o como seu sucessor) e ouvir o que ele pregava, tendo crescido e sido formado na antiga URSS, me despertou para o que esse homem seria capaz de fazer. Foi aí que recuperei o sentimento de que deveria voltar a lutar pela democracia na Rússia. Mas isso ainda levou um tempo. O xadrez ainda ocupava parte central da minha vida.”
Pós-carreira
“Em 2005, quando me aposentei do xadrez profissional, eu já sabia o que queria fazer. Meu papel era lutar ao lado daqueles que queriam evitar que a Rússia escorregasse novamente para os tempos sombrios do comunismo.”
O ‘modus operandi’ de Putin
“Putin age como um ditador, se move lentamente. Ele fareja o risco e, quando não vê resistência, avança. Assim, vai conquistando espaço geopolítico. Quando eleito, seu primeiro ato foi restaurar o hino nacional da União Soviética, o National Anthem. Ele já tinha uma visão, embora naquela época possuía poucos recursos. Ele já falava sobre recuperar as esferas de influência, numa alusão ao pacto de não agressão com a Alemanha nazista, assinado por Stalin, em 23 de agosto de 1939, que previa a divisão do leste europeu em esferas de influência soviética. Já estava claro que Putin tinha intenção de restaurar o poder imperial da Rússia. Ninguém deu ouvidos à mensagem de Putin. No ano seguinte, ele atacou a Geórgia (em agosto de 2008, Putin invadiu a Geórgia, país da região do Cáucaso). Logo depois, em março de 2014, a Rússia anexou a Crimeia, em um sinal claro de que Putin estava disposto a redesenhar as fronteiras internacionais, ignorando os tratados firmados pelo Estado russo. Como não via consequências para seus atos, Putin seguiu avançando. O ataque à Ucrânia, no dia 24 de fevereiro, não deveria ter sido uma surpresa.”
Putin quer mais?
“Putin nunca reconheceu a Ucrânia como um Estado soberano. Para ele, o país sempre foi um obstáculo para o seu desejo de dominar o Leste Europeu. Putin fez de tudo para subjugar a Ucrânia. Em 2014, na Guerra de Donbas, no leste da Ucrânia, cerca de 15 mil pessoas morreram. Em número de mortos é pouco, se compararmos ao que estamos assistindo hoje, pois os ucranianos estão resistindo, ao contrário do que Putin acreditava. Agora, se Putin vai parar após conquistar a Ucrânia? Por que ele faria isso? A Ucrânia é um dos maiores países da Europa, com uma população de 45 milhões de habitantes, ainda que 10 milhões possam ser refugiados agora. É um país com um grande exército e que está mostrando ao mundo que pode resistir. A Ucrânia é a melhor chance que temos de derrotar a máquina de guerra russa. E é por isso que não podemos desperdiçar esta oportunidade. Este é um momento crucial na história do mundo.”
Nova ordem mundial?
“Vivemos num Estado de Direito. Temos problemas, mas ao menos sabemos que há regras e como as coisas funcionam. Mas, se isso for por água abaixo, como vamos fazer planos de longo prazo? Quantas guerras para anexar territórios aconteceram desde a Segunda Guerra? Houve a anexação do Tibet pela China e do Kwait pelo Iraque. Mesmo quando Putin tomou parte do território da Georgia em 2008, ele não ousou anexá-lo. No caso do Iraque, o mundo reagiu com força, pois entendeu que havia ali um risco de mudança no mapa geopolítico. Quando Putin anexou a Crimeia e viu que não foi reprimido, pensou: ‘por que não a Ucrânia?’. A China está assistindo a tudo isso com muita atenção. Afinal, a China tem interesse em ampliar sua influência sobre Taiwan. Os chineses estão observando não apenas a Guerra da Ucrânia, mas também as respostas que o Ocidente está dando, por meio das sanções. Será que a Rússia pode sobreviver às sanções? A Ucrânia é hoje a linha divisória que separa o Estado de Direito do Estado Ditatorial.”
Kasparov vs. Deep Blue, a inteligência artificial da IBM
Tema lateral da conversa entre Câmara Lopes, Vescovi e Kasparov, o duelo do russo contra a inteligência artificial da IBM virou história. Aqui, um breve retrospecto.
Em 1996, Kasparov havia disputado e vencido uma rodada amigável de jogos contra o Deep Blue, na Filadélfia, nos Estados Unidos. Tomou um susto no começo, é verdade, perdendo a primeira partida, mas conseguiu recuperar-se rapidamente com três vitórias e dois empates. Ao final do encontro, confiante, o russo concedeu revanche. O time de cientistas da IBM aproveitou a chance para reprogramar completamente a máquina, assessorados por mestres do tabuleiro. Em 1997, estavam prontos para fazer história.
Em 11 de maio de 1997, o enxadrista russo foi destronado pelo Deep Blue, o supercomputador da IBM, ao final de uma tensa série de seis partidas em Nova York. O russo começou bem a série e venceu o primeiro match. Mas um lance inexplicável da máquina, quase no fim, transtornou o campeão, como conta o estatístico Nate Silver em “O Sinal e o Ruído” (709 páginas, Editora Intrínseca).
A estranha jogada foi atribuída por um dos pesquisadores a um bug: incapaz de se decidir entre tantas jogadas possíveis – 200 milhões de alternativas processadas por segundo –, o Deep Blue acabou movendo suas peças de forma errática. Kasparov venceu a partida, mas não cogitou que o lance pudesse ser fortuito, acho que se tratava de algum ardil que ele simplesmente não pôde decifrar.
O clima de camaradagem se dissipou rapidamente. O segundo jogo da série foi ainda mais tenso e terminou bruscamente. Encurralado pelo Deep Blue, Kasparov desistiu. Seguiram-se mais três partidas nervosas, três empates. ‘Ao final da quinta partida, Kasparov entrou quase aos gritos na sala de jogo e exigiu dos árbitros em tom ríspido que confiscassem e selassem com seu timbre os registros de todas as jogadas do computador’, narrou a reportagem de VEJA, de 21 de maio de 1997. A suspeita de Kasparov: mestres enxadristas estariam ajudando o Deep Blue a tomar decisões – a empresa manteve tudo sob sigilo, e a sala onde instalara a máquina, sob estrita segurança.
No sexto jogo, o derradeiro, Kasparov cometeu mais um erro inconcebível para um supercampeão. Permitiu que Deep Blue avançasse com um de seus cavalos e o oferecesse em sacrifício em troca de um peão. Na rápida ofensiva que se seguiu, o Deep Blue dominou completamente o tabuleiro, obrigando o russo a desistir no 19º lance.
Vitória da máquina sobre o homem? De certa forma, sim, claro. Mas não se deve esquecer que a tecnologia da inteligência artificial é, no final, produto do engenho humano. E é preciso lembrar também que Kasparov, perturbado pela suspeita de que a IBM trapaceava, errou.
Assista à live com Garry Kasparov.
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