Os assombros do ano 3 da pandemia de covid-19: comida mais cara, finanças pioradas

Pesquisa exclusiva indica que finanças pessoais ruíram nesses dois anos de covid, ao mesmo tempo que aponta mudanças positivas de hábitos

- Ilustração: Renata Miwa
- Ilustração: Renata Miwa

“O que mudou na cabeça dos brasileiros após dois anos de pandemia? Quais foram as atividades rotineiras que pioraram desde que o primeiro caso de covid-19 foi identificado no Brasil, em 26 de fevereiro de 2020 – e será que alguma delas melhorou? Houve alterações significativas nos hábitos de consumo? E quais as tendências para o futuro nesse campo? Por fim, no início de 2022, o “Ano III Pandêmico”, o que as pessoas querem manter no modo on-line e o que não abrem mão de vivenciar de forma presencial?

Algumas respostas estão em uma pesquisa de opinião, divulgada com exclusividade para o Valor pelo instituto Market Analysis, de São Paulo, especializado em áreas como sustentabilidade e estilo de vida.

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Não há dúvidas de que as finanças pessoais ruíram nesses dois anos de domínio da covid-19. E esse é um problema que tende a se alongar no tempo, mas nem tudo é terra arrasada. Grupos expressivos indicam melhoras em atividades tão diversas como as “relações com filhos e parentes”, além da “sensação de ser útil para outras pessoas”.

No mais, a enquete também traz indícios de que para uma boa parte da população o ato de comprar saiu do modo automático e enveredou pelo campo da consciência e da sustentabilidade. Daí o desejo de aumentar o uso de meios de transporte alternativos, como bicicletas e caronas, e o consumo de produtos naturais e orgânicos. Além disso, notam os especialistas, os brasileiros já estão maduros o suficiente para escolher o que querem continuar fazendo na esfera digital, a dos bits e bytes, e o que desejam manter no bom e velho mundo de átomos e tijolos, o presencial. A enquete também mostra o resultado dessas escolhas.

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No geral, a pesquisa foi dividida em três grandes blocos. O primeiro deles lança um olhar pelo retrovisor, para o passado imediato. Ele destrincha o efeito – se para melhor ou pior – de mudanças em 25 aspectos da vida cotidiana, sempre traçando uma comparação entre 2021 e 2020.

Aqui, três tópicos destacam-se dos demais. Todos estão relacionados a questões econômicas. Estes foram os únicos itens em que a maioria dos entrevistados indicou uma deterioração inequívoca da situação em 2021 em relação ao ano anterior. Juntos, eles formam o “trio sombrio” da sondagem e oferecem um novo indício do quanto o período pandêmico castigou o bolso da população.

Para 53% das pessoas, por exemplo, as despesas com comida e com o supermercado pioraram em 2021, ano em que a inflação bateu em dois dígitos, alcançando 10,06% de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Essa foi a maior queixa dos brasileiros identificada pelo levantamento. Em relação às condições financeiras em geral, 49% cravaram que houve uma deterioração no ano passado em relação a 2020.

Emprego

Na avaliação de 39% dos entrevistados, as condições de “emprego” também pioraram no mesmo período. Esse grupo, porém, igualou-se a outro que não identificou mudanças nesse campo. Essa turma também somou 39% das opiniões. Mas, como observa Fabián Echegaray, diretor da Market Analysis, esse empate não representa necessariamente uma boa notícia. “Em 2020, a situação do emprego já estava ruim”, nota. “O fato de ter permanecido igual em 2021 não significa que tenha melhorado. Ao contrário, pode indicar que permaneceu negativa.”

Assim, se somados os percentuais dos que não perceberam mudança (39%) no item emprego com aqueles que viram a situação se complicar ainda mais (outros 39%), chega-se a 78% dos entrevistados. Um contingente que os especialistas consideram compatível com as condições do trabalho no país. O Brasil registrou uma taxa de desemprego de 12,6% no terceiro trimestre do ano passado. Considerado o ano de 2020, tal cota atingiu 13,5%, um recorde da série histórica do IBGE iniciada em 2012.

Grupos expressivos de entrevistados perceberam uma piora em outros aspectos da vida cotidiana, ainda que a maioria não tenha compartilhado com essa visão negativa. Isso aconteceu, por exemplo, nas avaliações sobre “mobilidade nas cidades” e “perspectivas profissionais”. Ocorreu ainda no item “liberdades e diretos como cidadão”. Sobre esse assunto, 52% das pessoas ouvidas no levantamento consideraram que não houve alteração entre 2020 e 2021. Outros 27% afirmaram que ele desceu a ladeira. Só 17% cravaram que melhorou.

Liberdades e direitos

Nesse aspecto, Echegaray anota: “A percepção de piora das liberdades e direitos é fruto das restrições sofridas a partir das quarentenas, além da ingerência estatal num plano da vida que se pensava exclusivamente privado-individual. Isso aconteceu tanto com pessoas politizadas como com as apolíticas, embora os que se identificam como de centro e direita exibam um percentual maior de perda. Mas essa percepção não é exclusiva dos brasileiros. Ela ocorreu no mundo todo”.

Ocorre que o inverso disso tudo também é verdadeiro. Um contingente considerável de brasileiros percebeu mudanças positivas em relação a sete temas, ainda que essa opinião não represente a maioria. Isso aconteceu em tópicos como as “relações com filhos e parentes”, a “exposição à internet e a redes sociais”, a “capacidade de evitar compras desnecessárias”, a “relação com bebidas alcoólicas”, que havia piorado de forma pesada em 2020, e a “sensação de ser útil para outras pessoas”. No caso das conexões com “filhos e parentes”, para detalhar um exemplo, 36% apontaram melhoras, embora 46% tenham dito que elas permaneceram iguais às mantidas em 2020. Em contrapartida, apenas 14% apontaram uma queda da qualidade desses vínculos.

A balança da maior parte dos assuntos avaliados, entretanto, não pendeu nem para o lado negativo nem positivo. Mostrou-se estável em 2021 na comparação com 2020. Nesse campo, encaixam-se temas como as relações afetivo-amorosas, a forma de trabalhar ou lidar com o trabalho, o humor no dia a dia e até o sentimento de solidão.

Observe-se que, em relação à solidão, a pesquisa registrou uma leve piora, mas dentro da margem de erro da sondagem. Ainda assim, o assunto preocupa. Temas de natureza íntima tendem a ser camuflados pelos entrevistados nesses levantamentos. “E o problema é que essa dimensão da vida traz igual ou mais repercussões negativas para o dia a dia do que pioras no bolso, na situação empregatícia ou na qualidade do lazer”, diz Echegaray. “O bem-estar subjetivo piorado, como a solidão pode ser traduzida, marca uma percepção pessimista não apenas do que já aconteceu, a leitura retrospectiva, mas molda e condiciona adversamente as perspectivas de futuro.”

Futuro

O segundo grande bloco da enquete mira no futuro. Ele foi desenhado para captar tendências, extrair quais comportamentos os brasileiros pretendem alterar (no caso, aumentar ou diminuir) a partir de agora, também com base em uma lista prévia de 25 itens. Nele, aparece mais uma vez a preocupação com a carteira. Entre as pessoas ouvidas, 40% querem ampliar o esforço para “guardar dinheiro”, como forma de se garantir contra necessidades e imprevistos.

Essa seção da pesquisa também traz à tona a preocupação com a saúde e o bem-estar. Uma turma formada por 45% dos entrevistados, por exemplo, disse que pretende aumentar o uso de “acessórios e aplicativos de autocuidado”, ou seja, coisas como medidores de pressão arterial e aplicativos para a prática de meditação ou ginástica. Esse, note-se, é um desejo mais acentuado nas classes de renda alta e entre mulheres.

Ainda conectado ao assunto “saúde”, a pesquisa identifica uma propensão para o consumo de suplementos que “tenham impacto positivo na imunidade”: 39% dos entrevistados mostraram-se propensos a esse tipo de mudança. A “prática de esportes e atividades físicas” é outro destaque. Nesse caso, o maior interesse é por experiências individuais, sendo que 40% das pessoas ouvidas querem expandir esse tipo de atividade. Exercícios ou esportes coletivos ocupam o meio da tabela de mudanças, despertando o interesse de 34% das pessoas. Na avaliação dos especialistas, esse maior clamor pelo individual em detrimento do coletivo não é uma demonstração de individualismo, mas, sim, uma opção prática.

O trabalho da Market Analysis indica ainda um pendor dos brasileiros para a adoção de práticas que há pouco eram consideradas de nichos. Isso vale tanto para a seara dos costumes como para as compras em geral. Aumentar o uso de “transportes alternativos”, como bicicleta, carona compartilhada, ou mesmo apenas caminhar, é o objetivo de 40% dos entrevistados.

Além disso, 37% disseram que pretendem comprar mais produtos naturais e orgânicos. Em paralelo, e reforçando essa tendência, 36% afirmaram que querem reduzir o consumo de carnes e laticínios. Isso vale principalmente para a faixa etária entre 45 e 69 anos. Um segmento amplo, que agrupa 38% das pessoas ouvidas, também pretende cozinhar mais em casa – os maiores interessados, nesse caso, são de novo os mais ricos e as mulheres.

Tais posturas, apontam os especialistas, conectam-se com outra questão do primeiro bloco da pesquisa: 33% dos entrevistados disseram que estavam evitando compras desnecessárias com maior frequência – e conseguiam planejá-las melhor. Óbvio que a necessidade de economia é um dos motores dessa contenção. Mas talvez não seja o único. “A pandemia promoveu uma frenagem do consumo, e isso não aconteceu só por motivos econômicos”, diz Karine Karam, professora de pesquisa e comportamento do consumidor da ESPM, no Rio. “Alguns grupos passaram a repensar sua escala de prioridades.”

Ela observa que, em um levantamento recente, deparou-se com situações desse tipo. “Fiquei impressionada com o caso de uma mulher. Ela estava vendendo todos os sapatos e bolsas de grife. Havia adquirido esses produtos para ‘mostrar que chegou lá’, como uma forma de reforçar a autoestima. Mas já não se sentia mais representada por eles.”

Karam observa que essa mudança de mentalidade já encontra reflexos na publicidade, ainda que tenha limites óbvios. “Ela abrange apenas as camadas mais ricas da sociedade. Os mais pobres e a classe média estão longe de poder fazer esse tipo de opção, mas, ainda assim, há uma tendência de expansão de um consumo mais consciente, e ela foi acelerada na pandemia.”

Por outro lado, quem anda com o farol baixinho sob o ponto de vista de perspectivas é o ramo das viagens – e quanto mais distantes, menos atrativas elas se tornam. Assim, a preferência é dada para deslocamentos curtos, que possam ser feitos de carro. Mantida essa condição, 30% querem aumentá-los e 24%, reduzi-los. Se for preciso entrar num avião, a cota dos que gostariam de promover cortes nesse tipo de atividade aumenta para 29%, ante 25% dos que pretendem fazer o contrário. E se for um voo internacional, a situação se complica ainda mais: 32% querem evitá-los e 20%, ampliá-los.

Já a vontade de empregar plataformas digitais para contatos de toda a sorte ainda não se esgotou – isso apesar da overdose on-line que acometeu o mundo nos dois anos de pandemia. No total, 43% das pessoas declararam que querem aumentar a utilização de redes sociais (os jovens são os menos entusiasmados). Uma porção respeitável, que totaliza 40% dos brasileiros, está disposta a fazer mais reuniões pela internet, sendo que 37% demonstram apetite para alargar o uso da rede de computadores em encontros e conversas com amigos.

Esfera digital

E por falar em atividades online, esse é o mote da última seção da pesquisa da Market Analysis. Ela trata do movimento entre átomos e bytes, impulsionado pela covid-19. Nesse trecho, o levantamento pediu para que as pessoas dissessem quais atividades deveriam ficar na esfera digital e quais deveriam permanecer no mundo presencial.

O resultado foi que ficam no modo presencial: consultas médicas, atividades físicas individuais, encontros com amigos e parentes, lazer e a cultura, atividades sociais voluntárias, assim como as compras de itens essenciais (produtos de higiene, remédios). Vão para o digital: o estudo e a capacitação profissional, a aquisição de itens considerados não essenciais, além da participação em “debates de temas que impactam a sociedade” (como influenciar governantes, aderir a abaixo-assinados e acompanhar audiências públicas). Ficam no meio do caminho, entre o digital e o presencial, entretenimento com jogos individuais e celebrações e o trabalho (entre o escritório e o home office).

Karam, da ESPM, observa que, após dois anos de pandemia, parece haver maior nitidez entre as opções de atividades que funcionam melhor num ou noutro espaço. Isso depois de uma imersão forçada na esfera on-line, ocorrida notadamente em 2020. “Durante um bom tempo tivemos de fazer coisas pela internet, o que incluía desde jantares on-line e até brindes com vinho a distância”, ressalta. “Agora, já sabemos como tudo isso funciona nos dois campos.”

Note-se ainda que, das ações elencadas pela pesquisa que devem migrar para o digital, chama a atenção a presença do tópico “debates que impactam a sociedade”. Para Karam, essa é uma transferência natural de ambiente – e pode ser positiva. “As causas sociais e as discussões políticas tendem a ganhar uma escala nas plataformas digitais que não teriam no mundo presencial”, diz. “Além do mais, essa é uma forma pela qual as pessoas podem garantir a sua presença nos debates, ainda que estejam atoladas em rotinas pesadas.”

O cientista político Carlos Melo, professor do Insper, em São Paulo, não descarta que essa transferência possa ter vantagens, mas vê riscos na mudança. “Ela pode criar um tipo de ‘participação de sofá’ na política, marcada por pouco envolvimento”, observa. “Além do mais, como sabemos, nas redes digitais não há filtros, moderação ou uma curadoria eficaz para definir a confiabilidade das informações que circulam por ali. Assim, essas plataformas podem ser úteis para agregar mais gente, mas só serão melhores quando aprendermos a lidar com esses meios, dando-lhes maior qualidade democrática.” E o problema é que não há pesquisa que possa dizer quando isso vai acontecer.

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