Tatiana Salem Levy: Por que é preciso que as mulheres se escrevam

Hélène Cixous, Elena Ferrante e a relação entre corpo e escrita

As mulheres andam se escrevendo cada vez mais. Penso nisso ao ler “O riso da medusa”, ensaio clássico de Hélène Cixous (trad. Natália Guerellus e Raísa França Bastos, Bazar do tempo), e o romance “A filha perdida”, de Elena Ferrante (trad. Marcello Lino, Intrínseca). A expressão é da própria Cixous, logo na abertura de seu ensaio, de 1975: “É preciso que a mulher se escreva: é preciso que a mulher escreva sobre a mulher, e que faça as mulheres virem à escrita, da qual elas foram afastadas tão violentamente quanto o foram de seus corpos; pelas mesmas razões, pela mesma lei, com o mesmo objetivo mortal. É preciso que a mulher se coloque no texto – como no mundo, e na história -, por seu próprio movimento”.

Outro dia, num debate literário, a crítica Beatriz Resende comentou que vê na produção literária das mulheres contemporâneas a preferência por narrativas em primeira pessoa – e me perguntou se eu tinha algum palpite sobre por que isso ocorre. Esbocei uma resposta, que pode não ser definitiva, mas que tem me feito pensar e escrever sobre o assunto.

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Toda as meninas da minha geração ganharam na infância diários, em sua maioria, com cadeados. Neles, escrevíamos nossos pensamentos e atos mais íntimos, os segredos que não ousávamos dizer nem à nossa melhor amiga, e confiávamos no poder daquela fechadura. Aprendemos, desde cedo, que nossas coisas, nossos sentimentos são só nossos – e devem ser ditos em primeira pessoa para um ser inanimado: “Querido diário…”. E assim aprendemos, desde cedo, a esconder nossas ideias, nossas sensações e também os nossos corpos.

Até que um dia crescemos, largamos o diário e deixamos corpos e escrita trancados. Talvez por isso, quando uma mulher escreve, ela deixe reverberar essa escrita da sua infância, da sua adolescência, que se construiu na intimidade e no segredo. Que se construiu com um corpo que, como a palavra, também foi obrigado a se retrair, a se recolher. Nesta sala, não há espaço para você, para as excentricidades do seu corpo, ou para o fulgor da sua escrita, dizia a voz do lado de fora do quarto onde escrevíamos.

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“Eu sei porque você não escreveu”, afirma Cixous. “Porque a escrita é, ao mesmo tempo, algo elevado demais, grande demais para você, está reservada aos grandes, quer dizer, aos ‘grandes homens’; ‘é besteira’. Aliás, você chegou a escrever um pouco, mas escondido. E não era bom, porque era escondido, e você se punia por escrever, você não ia até o fim.” Quem leu a tetralogia napolitana de Ferrante certamente se lembra das dificuldades de Lenu para se firmar como escritora e do seu embate com essa literatura que não falava da mulher, não era escrita por mulheres.

Tanto no ensaio de Cixous, quanto na tetralogia e, ainda, no romance “A filha perdida”, há uma constatação muito evidente da relação entre corpo e escrita. Escrever – ou ex-crever, colocar para fora – só é possível com o corpo. Ao se censurar o corpo da mulher, censura-se também a sua palavra; assim sendo, para se libertar a palavra, temos que libertar o corpo: “Escreva-te: é preciso que seu corpo se faça ouvir”, afirma Cixous. É a letra, o nome, a palavra, que vai tirar a mulher do silêncio ao qual foi condenada.

Se “quase toda a história da escrita se confunde com a história da razão”, quando a mulher escreve, a escrita se confunde é com o corpo. Escreve-se é escrever o próprio corpo, seus desejos, suas pulsões. É o que faz Leda, a narradora de “A filha perdida”, mais um extraordinário romance de Ferrante. Aos 48 anos, ela decide tirar umas férias na praia, finalmente sozinha, depois de suas duas filhas – que já têm mais de 20 anos – irem morar com o pai no Canadá. Ela então sente uma liberdade que não sentia havia muito tempo, retoma o corpo para si, emagrece, recupera “uma sensação e força suave”. Cumprido o dever materno, pode, enfim, voltar a ser ela mesma, dona de seu corpo, de seus desejos. Pegar o carro e partir em férias, sem ter que se preocupar com ninguém é a imagem perfeita dessa liberdade.

Então, outra imagem a perturba e seduz: a de Nina, uma mulher linda, muito jovem, brincando no mar com a sua filha de 3 anos, Elena, e uma boneca, a quem chamam de Nena. Elas fazem parte de um grupo de napolitanos barulhentos e vulgares, que se espalham pela praia – e que, imediatamente, levam Leda aos recôncavos de sua memória, à sua infância em Nápoles, com uma família tão escandalosa como aquela. Uma família da qual ela fugiu, graças aos estudos.

Nina se destaca no meio deles. Nada vulgar, “distinguia-se com aquele seu jeito de ser mãe; parecia não querer nada além da menina”. E, conforme os dias passam, parece que Leda não quer nada além de ver Nina na praia. A jovem funciona como um espelho: ela se sobressai no meio do grupo de napolitanos, é diferente deles, tem algo de especial, que Leda não consegue explicar. Ao olhar para Nina, a narradora olha para si própria, revisita seu passado, mergulha em questões que norteiam a sua subjetividade.

O que é ser mulher? O que é ser mãe? Pode uma mãe abandonar seus filhos? Leda temeu a infância inteira que a sua mãe o fizesse, tantas eram as ameaças; mas, no fim, quem o fez foi ela, deixando suas filhas pequenas sozinha com o pai durante três anos. Foram três anos em que ela não viu nem falou com as filhas. Desapareceu. Sumiu. Abandonou-as. Depois, reapareceu e tomou-as de volta.

Ela nunca fala sobre esse episódio, mas uma conversa casual com o grupo napolitano a leva a revelar o seu segredo. E o seu segredo termina por aproximá-la de Nina, que tenta, desesperadamente, consolar a filha pela perda de sua boneca na praia.

“É preciso que à mulher seja dado, por uma outra, o melhor dela mesma, para que a mulher possa se amar, e devolver em amor o corpo que lhe é ‘nato’”, afirma Cixous. Essa mãe não precisa ser a própria mãe, pode ser uma estranha. No romance de Ferrante, Leda funciona como a mulher que dá o melhor de si mesma para que Nina possa se amar. Em certa medida, são mãe e filha. Em certa medida, são também amantes. Elas despertam, no corpo uma da outra, uma explosão que revela algo sobre seus próprios corpos.

Muitos anos antes dessas férias na praia, quando ainda era casada com Gianni, Leda hospedou por uma noite um casal que estava viajando e se amando livremente. Esse encontro casual foi o despertar de uma mudança em sua vida: “naquela manhã em que desfiz a cama de Brenda e de seu amante, quando abri a janela para eliminar o cheiro deles, parecia que eu havia descoberto no meu corpo um pedido por prazer que não tinha nada a ver com o das minhas primeiras relações sexuais aos dezesseis anos, o sexo incômodo e insatisfatório com o meu futuro marido, as práticas conjugais antes e, sobretudo, depois do nascimento das meninas”.

Após esse encontro, “uma espécie de desordem” dominou as suas fantasias, o seu corpo. Leda já não podia continuar sendo a boa esposa, a boa mãe. Anos depois, na praia, é a sua vez de despertar esse tremor em Nina; mas o tremor também vem na sua direção. Afinal, um encontro vai e volta, sempre.

“A filha perdida” é a escrita desse corpo feminino que explode em tantas direções, “que faz mil coisas diferentes, dá duro, corre, estuda, fantasia, inventa, se esgota”. E com a crueza característica de Ferrante, que não tem medo de expor o que se passa na cabeça e no corpo de uma mulher: não apenas o amor, a ternura, a dedicação, mas também a violência, a lascívia, o egoísmo. E as mães são, antes e durante, mulheres.

Por Tatiana Salem Levy, escritora e pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa. Originalmente publicado no Valor Econômico, veículo parceiro da IF.
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