Ucrânia é risco para o Brasil e para Bolsonaro

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De imediato, o choque nos mercados financeiros tenderia a gerar uma fuga de ativos de risco (dívida ou moeda de países emergentes, por exemplo) para ativos seguros
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Outro canal de contágio seria um choque nos preços globais do gás e do petróleo
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Combustíveis mais caros implicariam mais inflação, num momento em quase todo o mundo vive um período de alta expressiva de preços
A Ucrânia é distante, são mais de 11 mil km entre São Paulo e Kiev, e a crise com a Rússia pode parecer um problema remoto entre dois países frios. Mas a economia global e a brasileira seriam afetadas caso tropas russas invadam o território ucraniano. E isso prejudicaria as chances do presidente Jair Bolsonaro de se reeleger. Se Bolsonaro for mesmo a Moscou, precisa tentar persuadir Vladimir Putin a não atacar.
Segundo os EUA, a Rússia já deslocou mais de 100 mil soldados para perto da fronteira com a Ucrânia, além de grande quantidade de equipamento militar, numa evidente ameaça de invadir o país vizinho. Poucas vezes na história um contingente tão grande foi mobilizado sem que um conflito ocorresse.
A Rússia nega essa intenção, mas reclama que a guinada da Ucrânia para a esfera de influência econômica, política e militar do Ocidente ameaça a sua segurança. O mundo inteiro aguarda para conhecer as reais intenções do presidente Putin. Elas podem ser táticas ou estratégicas.
Se forem táticas, isso possivelmente significa que a invasão não é o objetivo final, mas sim um meio de obter concessões e e vantagens do Ocidente. Em resumo, um blefe.
Putin já conseguiu muito sem disparar um tiro. Fez subir o preço de gás e petróleo, os principais itens de exportação russos; dividiu o Ocidente, pois a Europa claramente não gostaria de sanções duras contra Moscou, como querem os americanos; desestabilizou a Ucrânia, tanto de forma econômica como politicamente; negocia um compromisso de segurança que pode oferecer alguma garantia de que a Ucrânia não será admitida na Otan (a aliança militar ocidental); enfraqueceu o presidente americano, Joe Biden, que é tratado como um banana pela oposição nos EUA (se os democratas perderem as eleições de novembro para o Congresso, o governo Biden entra em coma).
Putin desviou ainda a atenção interna do do pior momento da Rússia na pandemia de covid-19, devido em parte à reação ruim do seu governo; aproveitou para reprimir ainda mais o dissenso e a oposição; e fortaleceu a sua imagem e a posição da Rússia como potência. Não é pouco.
Nesse cenário, com solução pacífica da crise, qualquer efeito sobre as economias russa, europeia e global tende a ser limitado e passageiro.
Se Putin, no entanto, quiser fazer a manobra estratégica de recolocar a Ucrânia a força na esfera de influência russa, lançando um desafio ao Ocidente não visto desde a época da União Soviética, o custo seria altíssimo.
Os EUA prometeram sanções muito severas e imediatas; não haveria gradualismo. Essas sanções possivelmente incluiriam a suspensão definitiva do gasoduto Nord Stream 2, que está quase pronto e levaria mais gás russo diretamente para a Alemanha, e a exclusão do setor financeiro russo do Swift, o sistema global de troca de informações entre bancos, que permite operações financeiras internacionais (o Swift fica em Bruxelas e é controlado pelo Ocidente). A Rússia poderia reagir cortando ou reduzindo o fornecimento de gás para a Europa, em pleno inverno no hemisfério Norte.
Como tudo isso afetaria o Brasil?
De imediato, o choque nos mercados financeiros tenderia a gerar uma fuga de ativos de risco (dívida ou moeda de países emergentes, por exemplo) para ativos seguros. Isso elevaria o custo de crédito para o Brasil e as empresas brasileiras e afetaria o câmbio, com provável alta do dólar (lembrando que a desvalorização do real alimenta a inflação já alta no Brasil).
Os mercados não estão precificando um conflito na Ucrânia (até pela dificuldade de precificar eventos extremos).
Outro canal de contágio seria um choque nos preços globais do gás e do petróleo. A União Europeia (que hoje compra da Rússia 40% do gás que consome e quase 1/3 do petróleo) teria de achar fornecedores alternativos, o que pressionaria a oferta.
Combustíveis mais caros implicariam mais inflação, num momento em quase todo o mundo vive um período de alta expressiva de preços (na semana passada, os EUA divulgaram a maior inflação em 40 anos).
Além disso, a expectativa de inflação maior pode levar os bancos centrais dos países ricos a anteciparem e a serem mais agressivos no já esperado processo de alta dos juros. Isso teria amplo impacto global, tanto nos mercados como na economia real, elevando o custo do capital para países e empresas.
Energia mais cara significa que o consumidor teria menos dinheiro para gastar com outras coisas. Um conflito na Ucrânia causaria assim uma freada brusca da economia da UE, e a redução da demanda europeia prejudicaria o mundo todo.
O comércio com a Rússia também poderia ser afetado. Não está claro se, num eventual conflito, o Ocidente deixará o caminho aberto para que outros países, como o Brasil, comerciem livremente com a Rússia. E nem como esse comércio seria feito, caso a Rússia seja excluída do Swift.
Vendas para a Rússia
As vendas para a Rússia perfazem menos de 1% das exportações totais brasileira, de modo que o impacto não seria significativo, mas concentrado muito no agronegócio. Já uma redução das importações da Rússia prejudicaria mais ainda o agronegócio brasileiro. A Rússia é um importante exportador de fosfato e potassa, usados na produção de fertilizantes. A oferta desses produtos já está pressionada pelas sanções ocidentais a Belarus, outro grande exportador. Uma redução da oferta russa encareceria ainda mais esses insumos e elevaria os custos de produtos agrícolas.
Por fim, uma invasão da Ucrânia jogaria o mundo numa nova fase de extrema incerteza. A China, por exemplo, apoiaria Moscou e poderia ver uma ocasião para retomar Taiwan a força, ampliando ela mesma a sua esfera de influência. O risco de um conflito militar na Ásia aumentaria muito, e com ele as tensões que abalam a economia.
Esse impacto econômico de uma eventual invasão da Ucrânia ocorreria num ano em que as previsões de crescimento do Brasil já são bem fracas.
Para Bolsonaro, qualquer piora no cenário econômico reduziria ainda mais as suas chances de reeleição neste ano.
Não está claro quando uma invasão da Ucrânia ocorreria, mas a janela melhor para a Rússia é durante o inverno, até março, quando a Europa depende mais da energia russa. Até lá, o mundo continuará na expectativa.
Este texto foi escrito por Humberto Saccomandi, no Valor Econômico. Humberto Saccomandi é editor de Internacional do Valor desde a criação do jornal, em 2000. Na “Folha”, foi correspondente em Londres e editor-adjunto de Mundo
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