Recuperação judicial do Vasco: não estamos preparados para isso
Recuperação judicial pode ser alternativa, mas é preciso cuidado

Eis que temos a primeira recuperação judicial conjunta entre associação e SAF no futebol brasileiro, com o pedido feito pelo CR Vasco da Gama e o Vasco SAF. Não é a primeira associação, visto que temos casos como Cruzeiro, Avaí, Chapecoense e Figueirense. Mas uma operação conjunta entre associação e SAF, e do porte do Vasco, é a primeira vez que acontece.
A recuperação judicial (RJ) é um instrumento de renegociação de passivos e reestruturação financeira de uma empresa em dificuldades financeiras. A ação visa teoricamente proteger o ativo e os credores. Então, a ideia é colocar acionistas, gestores e credores juntos. Todos amparados pela Justiça para desenharem um plano que possibilite a empresa voltar a operar em condições de produzir. De pagar suas contas e manter seus funcionários.
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Recuperação judicial: conceito é simples
Não vou entrar em detalhes técnicos, mas o conceito é simples. Assim, a empresa ganha 6 meses de carência em relação ao pagamento de suas dívidas. Então, monta um plano de reestruturação no qual propõe reduzir custos, adequar investimentos e melhorar processos que gerem mais eficiência e receitas.
Em contrapartida, os credores aceitam algum desconto nas dívidas sem garantia, além de conceder prazo para recebimento.
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Há possibilidades adicionais em nome dos credores, como solicitar a inclusão de um interventor na gestão, trocar essa gestão e eventualmente transformar parte da dívida em capital. Dessa forma, abre-se mão de receber o empréstimo, mas contando que o processo tenha sucesso e o ativo valha mais no futuro.
Recuperação judicial no futebol
Dito isso, vamos ao futebol.
A recuperação judicial pode ser uma alternativa de reestruturação de clubes, mas é preciso ter certo cuidado em sua adoção. O impacto nem sempre é tão grande quanto se imagina por conta do perfil das dívidas dos clubes.
Lembrando: há três tipos de dívidas no futebol:
- Fiscais, tribuárias e Acordos;
- Operacionais (clubes/fornecedores) e
- Onerosas (bancárias e pessoas físicas)
Assim, apenas uma parte delas é passível de ser reestruturada numa RJ. O que entra na conta são as onerosas sem garantia. Teoricamente, as dívidas com cessão e alienação fiduciária de ativos deveriam ficar de fora, mas nem sempre isso é respeitado. E parte das operacionais, notadamente fornecedores.
Ah! Acordos trabalhistas também entram na conta
Dessa maneira, dívidas fiscais e tributárias, fruto de não recolhimento de FGTS, IR e encargos trabalhistas, não entram na RJ. Há processos específicos de parcelamento.
As dívidas com clubes no exterior, por serem regidas pela FIFA, também ficam de fora, sob risco do clube sofrer sanções em caso de não pagamento. E é possível que também valha para os agentes em negociações com exterior.
No caso de clubes brasileiros e comissões de agentes nas negociações, o fórum costuma ser a CNRD. Trata-se da Câmara Nacional de Resolução de Disputas. O órgão teoricamente deveria funcionar nos mesmos moldes da FIFA.
Mas, como temos lido no caso do Cuiabá SAF, a CNRD tem sido benevolente com devedores, aumentando prazos de pagamento e excluindo juros nas dívidas. Isso sem exigir contrapartida na gestão.
Mas falaremos sobre isso daqui a pouco.
Ou seja, se pegarmos o Vasco com os números de Dez/23, temos o seguinte cenário:
Dívida Onerosa | R$ 55 milhões |
Dívida Operacional | R$ 204 milhões |
Dívida Fiscal | R$ 517 milhões |
TOTAL | R$ 776 milhões |
Então, a informação no comunicado é de que a dívida está em R$ 1,4 bilhão. Ou seja, dobrou em 12 meses. E esses dados indicam duas coisas importantes: a primeira é que o clube seguiu gastando sem lastro. A segunda é que a maior parte da dívida não consegue ser endereçada a partir de uma RJ.
Para uma avaliação mais efetiva é preciso números recentes. Mas se já é difícil ter números de clubes na data, imagine sob RJ.
Isso reforça minha demanda recorrente sobre transparência.
Não há justificativa para termos demonstrações anuais publicadas apenas em 30 de abril do ano seguinte. Muito menos não termos balancetes trimestrais com qualidade e notas explicativas. O futebol quer se dizer profissional e precisa se mostrar profissional.
O que vem depois da recuperação judicial
O clube pode usar o dispositivo da recuperação judicial. Mas pode adotar também o Regime Centralizado de Execuções (RCE). Trata-se de uma forma de pagar dívidas cíveis e trabalhistas com um percentual da receita. Corinthians e Santos aprovaram RCEs onde direcional 4% da receita recorrente para dívidas.
Mas o fato é que isso é paliativo. Seja porque endereça poucas dívidas, seja porque os clubes seguem num processo surreal de continuar gastando e se endividando.
Mais que uma alternativa para quem quer se reorganizar, os processos de RJ ou RCE deveriam, necessariamente, impor condições de controles de gastos e direcionamento de recursos não recorrentes para servir credores. E eles deveriam exigir isso e ainda pensar seriamente na possibilidade de converterem suas dívidas em capital das SAFs.
Afinal, fica muito cômodo para o dirigente pedir 60% de desconto na dívida, pagar em 15 anos, e no momento seguinte contratar um jogador mediano por R$ 15 milhões líquidos anuais. Isso enquanto as contratações anteriores estão parceladas a perder de vista.
A alternativa da troca de gestão
Assim, outro tema importante que precisa ser levado em consideração é da troca de gestões. A chance de vermos novamente os mesmos problemas é imensa. Somos mestres em não aprender nada. E não esquecer nada.
Se em indústrias tradicionais a capacidade de compreensão dos riscos e oportunidades pela justiça são difíceis, imagine numa indústria cheia de peculiaridades como a do futebol.
E aqui temos outro tema importante: falta criar entendimento do que é possível fazer nesses processos. Porque acabamos caindo sempre no mesmo problema. Gasta-se para ser competitivo, não se consegue, e isso vira novas dívidas.
Falta de regras dentro do futebol
Outro tema para debate é a falta de regulamentação dentro do esporte.
Quando a Lei da SAF foi aprovada senti falta de ‘regras complementares’ do regulador do futebol no Brasil para lidar com esse mundo novo.
Se já havia alguma ideia de criarmos um fair play financeiro, seria o momento propício para incluirmos processos de proteção ao futebol, como a necessidade de analisar os novos donos das SAF. Isso para evitar casos como a 777 Partners.
Outro ponto importante é definir uma regra para os clubes que venham a falir. Afinal, o que será feito da licença? Não tenho nenhuma dúvida que se uma SAF falir, veremos a associação original pleiteando a licença para seguir na mesma divisão. E não recomeçando do zero, como se vê na Europa.
Pior: pleiteando e conseguindo.
Vale o mesmo para as associações, que ao pedirem RJ devem estar sujeitas à falência. E o que acontece nesses casos? Um clube em RJ deveria automaticamente sofrer transfer ban para evitar que haja benefícios competitivos no período de carência.
Enfim, são temas que deveriam estar na pauta de qualquer regulador atento e interessado em transformar o futebol para melhor.
Minha esperança é de que um dia, quem sabe, uma liga de clubes surja e tenha todas essas preocupações em mente. Já passou da hora de ter ideias. Precisamos começar a discuti-las e colocá-las em prática.
Não dá para seguir vivendo de puxadinhos.