Governança corporativa na prática
A governança corporativa nos concede instrumentos para que o negócio não seja impactado negativamente por conflitos
Em 2023, a HBO exibiu a última temporada da renomada série americana “Succession”. A trama da série se desenvolve no entorno de quatro irmãos que competem entre si pelo cargo de CEO da WaystarRoyco, um conglomerado de mídia bilionário.
Os irmãos Roy, ao longo das quatro temporadas da série, disputam – nem sempre da forma mais ética e respeitosa – pelo reconhecimento, por parte do pai, de sua posição como sucessor dos negócios da família.
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Obviamente, os cenários criados pelos roteiristas são absurdos e cômicos, mas não pude deixar de refletir: e se a WaystarRoyco tivesse uma estrutura robusta de governança corporativa?
Provavelmente, muitos dos conflitos retratados na série não ocorreriam.
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A governança corporativa, quando bem executada, possui este atributo: acabar com os impasses existentes entre acionistas, administradores e demais stakeholders envolvidos na empresa, possibilitando que a gestão enfrente menos problemas e possa desenvolver plenamente a atividade econômica do grupo empresarial.
A governança corporativa é fundamental para qualquer tipo de empresa; pois essas, afinal, construídas e geridas por pessoas. É natural que existam conflitos e discordâncias, o que pode ser alterada é a forma como lidamos com tais desavenças.
Dito isso, a governança corporativa nos concede instrumentos para que o negócio não seja impactado negativamente por tais conflitos.
As empresas familiares se beneficiam ainda mais da governança corporativa, já que é fundamental impedir que eventuais discussões da esfera familiar impactem o dia a dia da empresa.
Nesses casos, ainda é importante estruturar instrumentos de governança familiar, tema que anda lado a lado com a governança corporativa.
Ao longo dos anos, o Direito brasileiro incorporou ao seu ordenamento uma série de instrumentos que tem origem no common law, o sistema jurídico adotado pelos países anglo-saxões.
Esses instrumentos possibilitam a adoção de melhores práticas de mercado para estruturar a governança corporativa, permitindo que os sócios e demais stakeholders implementem as estruturas que façam sentido para a sua realidade, considerando as particularidades da empresa em questão.
Acordo de Acionistas
O Acordo de Acionistas é um instrumento jurídico amplamente difundido no meio corporativo brasileiro. Atualmente, é difícil encontrar alguma empresa que já tenha passado pelos seus estágios iniciais de desenvolvimento e que não possua um Acordo de Acionistas.
Nesse sentido, ele pode ser considerado um documento básico e inicial para aqueles que desejam instituir os fundamentos da governança corporativa em seu grupo empresarial.
Este documento é responsável por gerir a relação entre os sócios, zelando pela boa convivência e pela coexistência pacífica entre eles.
Para tanto, são estabelecidas uma série de obrigações, direitos e deveres que os sócios se vinculam a seguir por vontade própria. Existem uma série de disposições possíveis, que variam de acordo com aquilo que os sócios estão dispostos a seguir e que funcionam na atividade da empresa.
É importante lembrar que o Acordo de Acionistas se torna vinculante apenas para os sócios, sendo que a empresa, neste momento, assume um papel secundário que apenas dá anuência aos termos estipulados pelos sócios.
Assim, o foco é estabelecer obrigações para os sócios e não para a empresa enquanto ente com personalidade jurídica própria, mesmo que sobre ela incidam diretamente os efeitos dos termos pactuados no documento.
Ainda abordando o papel secundário da empresa no Acordo de Acionistas, a legislação brasileira estabelece que, para que os efeitos do contrato sejam oponíveis perante a terceiros, é necessário o arquivamento do documento na sede da companhia e a averbação nos livros societários relevantes (considerando que o instrumento pode instituir ônus sobre a propriedade das quotas sociais).
Dentre os possíveis mecanismos a serem estabelecidos no Acordo de Acionistas, alguns são mais comuns:
1) Restrições à Venda de Quotas: É possível estabelecer, por meio do Acordo de Acionistas, algumas restrições ou procedimentos específicos para que seja realizada a venda de quotas, tanto para terceiros quanto para os demais sócios da empresa.
O direito de preferência, por exemplo, cria a obrigação do sócio notificar aos demais sócios que possui o interesse de realizar a venda de suas participações a terceiro.
Os sócios, por sua vez, têm o direito de, preferencialmente, adquirir as participações antes que elas sejam vendidas a não-sócios, sempre se valendo das mesmas condições de venda que foram ofertadas ao terceiro.
Além disso, é possível estabelecer especificidades para o exercício do direito de preferência, tais como:
(a) criar a obrigação de que todos os acionistas manifestem o interesse em exercer o direito de preferência para que a participação social do sócio retirante seja diluída em iguais proporções, afetando de maneira menos incisiva o controle da empresa;
(b) criar mecanismos para que os sócios possam fazer ofertas mais vantajosas do que a oferecida pelo terceiro para que o sócio retirante possa escolher, dentre as ofertas dos sócios remanescentes, aquela que seja mais benéfica para si;
e (c) estabelecer prazos e notificações específicas para o exercício do direito de preferência.
O prévio consentimento é outro instrumento bastante comum nos Acordos de Acionistas. Ele cria a necessidade de que, antes da venda de ações ao terceiro, os sócios remanescentes se manifestem positiva ou negativamente a respeito da entrada do terceiro no vínculo societário.
Cumpre lembrar que o documento deve criar critérios objetivos para que os sócios possam aceitar ou recusar a entrada do terceiro na sociedade.
Por fim, existe a possibilidade de instituir a cláusula de venda conjunta. A venda conjunta consiste na possibilidade de os acionistas participarem de uma oferta de venda de ações a terceiro, nas mesmas condições oferecidas ao primeiro sócio.
Nessas circunstâncias, a venda ao terceiro fica obrigada à aquisição das quotas de todos os sócios que exerceram o direito de venda conjunta.
2) Exercício do Direito de Voto: Estabelecer um tratamento específico para o direito de voto em assembleia geral também é um alternativa bastante comum. É possível, por exemplo, instituir o direito de voto em bloco, hipótese na qual um grupo de acionistas vincula seus votos aos demais pertencentes ao mesmo grupo.
Além disso, é comum definir, por exemplo, representantes para cada um dos blocos. Cumpre lembrar que o voto em bloco não é um instrumento que pode ser utilizado deliberadamente, pois existem uma série de restrições estabelecidas tanto pela jurisprudência quanto pela doutrina.
Para mais informações a respeito deste instrumento, recomendamos a consulta a assessores especializados no tema.
Outro mecanismo que afeta o exercício do direito de voto, mesmo que indiretamente, é a possibilidade de estabelecer reuniões prévias para tratar dos assuntos a serem discutidos em assembleia geral, como uma forma de solucionar eventuais dissonâncias antes da reunião principal.
3) Solução de Conflitos: Além dos pontos acima, o Acordo de Acionistas pode possuir previsões para evitar o surgimento de conflitos entre os sócios, além de criar mecanismos para solucioná-los caso venham a ocorrer.
Nesse contexto, é comum a inclusão de cláusula estabelecendo que, em caso de conflitos relacionados ao Acordo de Acionistas, os sócios são obrigados a endereçá-los via arbitragem, e não na justiça comum.
Contrato Social/Estatuto Social
O Contrato Social e o Estatuto Social são os documentos fundamentais da empresa. Neles, constam as informações básicas para o funcionamento da pessoa jurídica. São documentos públicos registrados nas juntas comerciais de cada estado.
A legislação brasileira – tanto o Código Civil quanto a Lei das Sociedades por Ações – dispõe sobre uma série de matérias que devem, obrigatoriamente, constar no Contrato Social e/ou no Estatuto Social.
Entretanto, é possível que os sócios optem por adicionar disposições para além do que a legislação estabelece como obrigatório.
Nesse sentido, os documentos fundantes do vínculo societário podem ser interessantes para a criação de mecanismos que favorecem a governança corporativa, como a criação de comitês internos na empresa, responsáveis por endereçar os mais diversos assuntos.
Conselhos
Os conselhos podem auxiliar a administração da empresa, sendo órgãos importantes para as tomadas de decisões embasadas na direção da sociedade. Dentre os conselhos, os mais comuns em Sociedades por Ações são os Conselhos de Administração, Consultivos e Fiscal.
1) Conselho de Administração: O Conselho de Administração interfere diretamente na administração da sociedade, podendo, dentre outras atribuições, atuar como órgão fiscalizador da diretoria, além de supervisionar e gerir a administração da empresa como um todo.
2) Conselhos Consultivos: Os Conselhos Consultivos podem possuir temas de trabalho específicos, atuando no aconselhamento da gestão em suas respectivas áreas. Um exemplo de Conselho Consultivo seria aquele direcionado para estratégias ESG. Como sua nomenclatura sugere, seu trabalho no dia a dia é de supervisão e sugestão de melhorias, mas sem poder direto para as tomadas de decisões em seus campos de atuação.
3) Conselho Fiscal: O Conselho Fiscal possui uma atuação mais incisiva nos aspectos contábeis da empresa, sendo responsável por fiscalizar as contas e podendo sugerir destinação de recursos.
Como vimos, existem diversos mecanismos para estabelecer uma governança corporativa robusta em sua empresa. Abordei aqui apenas os tópicos mais comuns, mas existem uma gama de outros instrumentos que podem ser adotados a depender de cada grupo empresarial.
Por isso, para aperfeiçoar a governança corporativa, é fundamental contar com o auxílio de assessores especializados no tema, que serão capazes de identificar os instrumentos pertinentes e aconselhar os sócios e demais stakeholders nas melhores alternativas.