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Tudo o que há de errado com os NFTs em 10 exemplos
A discussão sobre o valor artístico dos NFTs é um assunto que dá muito pano para manga, e, se formos analisar de um ponto de vista imediatista, apresenta muito mais indícios de pender para o lado de mera especulação monetária e pouca substância estética na maior parte dos casos.
Falar desse assunto apenas sob o viés do “bom gosto” gera o risco de um crítico como eu soar tão tradicionalista e conservador quanto aqueles que vituperaram Marcel Duchamp e seu urinol há mais de um século.
Mas é importante entender o contexto de cada coisa para não cair em aforismos que dispensam uma análise mais profunda do fenômeno dos NFTs, que apesar de estar ainda longe de ser um movimento artístico per se, deve certamente ser considerado uma questão cultural e também precisa ser visto como um novo sintoma do capitalismo tardio e sua busca incessante pela “financeirização de tudo”.
NFT é a transformação de qualquer coisa na internet em ativo financeiro
Afinal, o NFT (ou token não-fungível) é, basicamente, a financeirização de uma “coisa qualquer” dentro da internet: um JPEG, GIF, PDF, tweet, um vídeo, mp3, um site em html… As possibilidades são infinitas.
O NFT nasce ao se “cunhar” um token exclusivo que pode ser possuído por apenas uma pessoa, da mesma maneira que apenas uma pessoa pode possuir uma criptomoeda, devido à documentação dessa transação dentro da blockchain.
Essa condição de “escassez artificial” (gerada pela exclusividade de posse desse token e não da coisa em si) cria o ambiente mercadológico onde o valor não está vinculado à obra ou a sua originalidade (afinal, qualquer um pode clicar com o botão direito e salvar a imagem ou texto em seu computador), mas sim à posse simbólica de um determinado item para ser “colecionado” ou comercializado posteriormente.
Assim como é com os ávidos defensores das criptomoedas, os partidários dos NFTs sustentam seu potencial descentralizador – a possibilidade dos artistas se tornarem mais independentes e terem mais controle sobre o valor de comercialização de suas obras.
No entanto, é fácil apontar casos em que artistas têm seu trabalho roubado e comercializado sob um token diferente por outra pessoa. Não é raro também encontrar casos de pessoas lavando dinheiro através da tecnologia ou de golpistas se aproveitando do boom cultural fisgando investidores que não querem ficar de fora da última tendência do mercado.
Outro ponto importante é o custo ambiental: a rede blockchain do Ethereum, moeda pela qual os NFTs são comercializados, gera um custo energético anual próximo ao de um país como a Hungria.
Uso artístico dos tokens não-fungíveis é limitado
Alguns sustentam o potencial do NFT como uma linguagem conceitual: o artista digital Pak, por exemplo, teve seu NFT “The Pixel” (que consiste em um único pixel cinza) vendido por US$ 1,36 milhão, fato que coloca em questão a valoração absurda dos NFTs ao estampar com tamanha soma algo que nada mais é que o elemento mais simples e primordial de uma tela digital.
A artista nigeriana Zina Saro-Wiwa colocou algumas de suas obras estampadas em garrafas de gim no mercado como NFTs para questionar a ideia de valor monetário, em referência ao uso da bebida como moeda fiduciária na Nigéria colonial. Outros, como Beeple e Jonas Lund, usam do meio como mensagem para explorar os limites dos NFTs como linguagem artística.
No entanto, tais casos são raros e limitados a círculos já consolidados de arte contemporânea (muitos desses artistas citados tiveram suas obras vendidas através de casas tradicionais de leilões, como Sotheby’s e Christie’s).
NFTs na “selva” da Web 3.0
Os NFTs vivem, na sua grande maioria, dentro da “selva” da Web 3.0: no mundo dos memes e do shitposting, em comunidades no Twitter, Discord ou Reddit, e nos marketplaces dominados por crypto bros, ávidos por investir seus milhões atrelados a criptomoedas em coisas absurdas sob valores exorbitantes apenas como um sinal de status.
E esse é o público-chave dos NFTs: “investidores” que nasceram no ambiente da web, das comunidades de gamers e streamers e que participaram (e participam) ativamente na produção dessa tecnologia.
Em coluna para o site Gawker, Dan Brooks é certeiro ao colocar os NFTs como uma manifestação visual das criptomoedas: “É arte para pessoas cuja imaginação foi absolutamente capturada por um novo tipo de dinheiro que você pode fazer no computador.”
Quem alimenta esse mercado está mais preocupado no valor de choque ou de chiste de uma imagem ou GIF e o “valor” que você pode atrelar a ela, ou no status que possuir ou não tal NFT na sua foto de avatar pode lhe conferir dentro de uma determinada comunidade virtual.
Ou que, ainda, reforçam o senso de FOMO (acrônimo de fear of missing out – medo de ficar de fora, em inglês) na cultura para atrair pessoas de influência para dentro do “jogo” e especular ainda mais sobre o trabalho de artistas ao gerar tokens de tokens.
O emblemático caso da entrevista de Paris Hilton a Jimmy Fallon, em que os dois exibem com orgulho seus NFTs de macacos adquiridos da coleção Bored Ape Yacht Club como se estivessem exibindo seus carros esportivos numa garagem, causou interesse e estranhamento na mesma medida.
Afinal, eram duas celebridades na TV aberta dos Estados Unidos promovendo imagens que, em um contexto qualquer, poderiam passar como um mero trabalho de arte de um adolescente na escola, exceto que nesse caso elas foram adquiridas por centenas de milhares de dólares e fazem parte de uma coleção hoje avaliada 669 mil ETH (ou US$ 1,10 bilhão na cotação de 23 de agosto de 2022).
Um mercado superfaturado
A Bored Ape Yacht Club faz parte da categoria dos chamados NFTs “generativos”, que são basicamente séries de imagens geradas por algoritmos a partir de uma base de múltiplas camadas pré-estabelecidas.
Popularizada inicialmente pela série Cryptopunks, essa categoria gera algumas das maiores aberrações em termos de valor monetário e estético da atualidade, e estimula uma série de práticas questionáveis a partir da cultura do hype e dos “colecionáveis”.
É como se fosse um mercado superfaturado e especulativo de álbuns de figurinhas, em que a posse de determinada figurinha lhe atribuisse um certo “status” e importância dentro da comunidade das pessoas que “estão por dentro” da onda.
Chegou-se ao absurdo de termos todo um mercado de “pênis” colecionáveis, que vão de ilustrações do membro masculino aos tipos de fotos que muitas mulheres recebem sem solicitar em aplicativos de namoro. O “artista” Dickasso, por exemplo, já faturou mais de 100 mil dólares vendendo seus colecionáveis de pênis pixelados. A Budweiser, inclusive, passou por uma saia (ou seria cueca?) justa ao revelar o endereço de sua Ethereum Wallet, que foi inundada por NFTs, incluindo alguns exemplares fálicos na galeria.
Museus, empresas, times esportivos e outros transformam NFTs em commodities
A tecnologia dos NFTs transforma sem preconceitos tudo que tem zeros e uns de braços dados em mercadoria. Museus estão vendendo obras do seu acervo como NFTs (mesmo que sua posse do NFT não lhe confira nenhum direito sobre a obra no mundo real); empresas como Taco Bell e Pringles vendem GIFs como NFTs, e outras de luxo como a Louis Vuitton estão explorando o metaverso como uma nova fronteira de sua “exclusividade” comodificada; times de futebol e basquete vendem fotos de memorabilia ou vídeos de melhores momentos como NFTs.
Todos os dias um NFT novo
A impressão é que todos os dias a gente é bombardeado por um novo tipo de NFT com uma celebridade ou uma grande corporação por trás, ao ponto de se tornar irritante e gerar altos níveis de suspeição e ceticismo.
E como esse sentimento de raiva é algo inerente ao ser humano, precisamos sempre buscar dar uma vazão saudável e inofensiva a esses impulsos. Por isso, selecionei abaixo alguns dos exemplos mais revoltantes do mercado dos NFTs, para que você, assim como eu, consiga expurgar um pouco da indignação diante do colapso evidente da nossa civilização.
Novamente, não quero negar as possibilidades que os NFTs podem ter enquanto meio – já foram citados aqui alguns exemplos de artistas utilizando da linguagem da ferramenta em si de maneira crítica e conceitual para dar forma a obras de digno valor expressivo. Nem quero negar que várias pessoas estão conseguindo maior retorno pelo seu trabalho artístico graças ao mercado que se abriu.
Mas é importante termos em mente os absurdos desse mercado e as maneiras implícitas (e explícitas) de exploração que esse bombardeio cultural pode suscitar a pessoas desavisadas que querem simplesmente “participar” e “estarem por dentro do jogo”.
1. “A small tweet for a man, a giant leap for fake news” – O primeiro tweet de Jack Dorsey
Em março de 2021, o milionário das criptos Sina Estavi arrematou o NFT do primeiro tweet do fundador do Twitter Jack Dorsey por 2,9 milhões de dólares. “É a Monalisa do mundo digital”, afirmou o investidor. Um ano depois, Estavi colocou o NFT para leilão no marketplace OpenSea avaliando o ativo em 48 milhões de dólares. No entanto, após meses na plataforma, o NFT está no momento sob um lance ativo de 1 ETH (Pouco mais de US$ 1.000).
2. “Paz, amor e NFTs” – A coleção de “arte” de Ringo Starr
Em maio deste ano, o quarto beatle Ringo Starr anunciou o leilão de uma coleção de artes originais suas em NFTs, com direito a uma “experiência imersiva” no metaverso. As obras do lendário baterista foram arrematadas por cerca de 120 mil dólares em junho, e representam belos exemplos da mais impressionante arte pop que você pode adquirir por 20 reais em uma galeria na Praça da República, em São Paulo, ou numa banquinha rocker do Saara no Rio de Janeiro.
3. Floydies
Este exemplo teve vida curta, mas como na internet o screenshot é eterno, temos como relembrar dessa aberração de total racismo, insensibilidade e altas doses de imbecilidade. No dia 7 de dezembro de 2021 a coleção de NFTs generativos “Floydies” nascia na plataforma OpenSea com uma premissa que, mesmo se ignorarmos todo o resto, é no mínimo questionável: a intenção era “celebrar de um jeito único e progressista a vida monumental de George Floyd (…) ao possuir um Floydie e expressar seus valores de igualdade”.
Floyd foi assassinado brutalmente pelo policial Derek Chauvin em Mineapollis, EUA, em maio de 2020, instigando uma crescente em protestos do movimento BLM (Vidas Negras Importam) que prega pelo fim do racismo estrutural e da brutalidade policial com as comunidades negras. No entanto, os criadores dos Floydies não tinham nenhuma ligação com o movimento ou com as vítimas, e quiseram apenas se aproveitar de modo predatório do senso de justiça social de algumas pessoas, do modo mais grotesco possível, ao transformar controvérsia em lucro.
4. Barco de refugiados, da Associated Press
Outro exemplo que nem chegou a ser comercializado, tamanha a controvérsia gerada. Em fevereiro, a agência de notícias Associated Press anunciava em seu Twitter um novo drop de fotografias dentro do marketplace de NFTs da agência com um vídeo do jornalista Felipe Dana que registrava refugiados que saíram da Líbia para a Europa em um barco superlotado. “Lucrar em cima da desgraça alheia” é apenas um exemplo das diversas acusações e observações dadas como resposta ao tweet. A organização rapidamente apagou a publicação e declarou ter sido uma “pobre escolha de imagem para um NFT e que não irá colocar a obra para venda”.
O marketplace de NFTs da Associated Press vende tokens de suas imagens jornalísticas em valores que vão de US$219 a US$1,799 e, de acordo com seu comunicado para a imprensa, tem os lucros revertidos para o financiamento da redação da organização (que não tem fins lucrativos). As vendas de imagens jornalísticas como arte é uma discussão que precede os NFTs, com muitos questionando o uso de imagens do sofrimento humano ou de guerras para além do texto jornalístico.
5. As cartas Pokemon do streamer Logan Paul
Logan Paul é uma das figuras mais populares e controversas da internet e, embora os motivos de sua popularidade possam ser questionados, o número de seguidores do estadunidense na Internet o torna um ativo valioso para investidores querendo enfiar NFTs goela abaixo do público. Em fevereiro de 2022, o streamer lançou 44 cartas holográficas virtuais que seriam leiloadas junto a packs de cartas (reais) Pokemón e o resultado é uma série nauseante de “colecionáveis” auto-congratulatórios e de humor colegial. Paul, aliás, é um ávido investidor do mundo dos NFTs, tendo já lucrado com alguns de seus ativos, e perdido somas incríveis em outros.
6. Lindsay Lohan e seu Herbie de Bitcoins
Como parte do dia internacional da Mulher em 2021, a ex-atriz mirim, ex-ícone adolescente e eterna sub-celebridade Lindsay Lohan anunciou no twitter o leilão de uma peça de arte que transcende os limites da expressão pictórica entre o óleo sob tela e o chorume em código binário. Com um apuro cromático contumaz (que lembra as obras do grande expoente da arte neofascista tupiniquim Lucy Born), a obra tentou celebrar as mulheres no mundo Crypto com uma representação da atriz como uma “astronauta do bitcoin” no remake de Herbie (“Se Meu Fusca Falasse”, em português), um papel tão significativo em sua carreira quanto uma promessa dada por Elon Musk num tweet. A “arte” terminou arrematada por pouco mais de US$ 12.000.
7. Psychedelic Healing, de ALEX GREY
Essa tem “respaldo” artístico – foi vendida em leilão na Christie’s por US$ 18,900. No entanto, é daquelas peças que representam o lado ruim da arte digital, com 3D meio tosco, alta saturação, muitos gradientes e esse feeling “Virtual Transcendente”. A obra, que poderia ser a representação do sonho lúcido de um tech-bro chapado com peiote durante o Burning Man, pelo menos sabe o mercado que deve habitar ao ser vendida por NFT. É difícil imaginar um alvo diferente para esse crime estético que não seja um nerd milionário do Vale do Silício que errou a medida na microdosagem de LSD, vendeu sua startup por milhões para um Angel Investor e agora comanda um espaço de Yoga Tântrica de Cryptoshiatsu FinGrowth com BitSoulMapping e Pixel Healing no metaverso.
8. Frankenstein iii, de MOONSUNDIAMOND
A obra da artista digital do Zimbábue que vive no Canadá tem pontos interessantes (Seu perfil no marketplace SuperRare traz alguns exemplos um pouco mais válidos no que se diz respeito ao talento artístico), mas este GIF a venda como NFT no site da Christie’s me deixou um pouco perplexo. Com alguns elementos de colagem, cores extremamente saturadas, padrões pouco harmônicos e um traço primário e sem profundidade ou textura, a impressão que se tem é de uma composição feita no MS Paint em um Pentium de 50 Hz do periodo paleocênico da Era de Gates-Jobs. Talvez seja esse o intuito… Enfim, torcendo para que ela engane um crypto-bro qualquer e saia com os bolsos cheios.
9. EditThisNFT, de Jimmy Wales
Um exemplo de arte conceitual em que o conceito é bem feito, no sentido de um sonoro “bem feito” pra quem foi o tolo que dispensou de 750.000 dólares no arremate dessa “obra”. Trata-se de um NFT do minuto 0 (ou seria segundo 0? Byte 0?) da Wikipedia. É o equivalente digital de um filete de grama de quem cunha a frase “quando eu cheguei aqui tudo era mato”. Boa sorte para o comprador quando ele for ResellThisNFT (revender essa NFT, em inglês).
10. Coleções de “presidenciáveis” na OpenSea
Já que o ambiente crypto é a representação utópica do livre mercado liberal, nada mais justo que surgirem uma série de espertinhos buscando capitalizar no jogo político e na suposta “polarização” do embate brasileiro. Já estão aparecendo aos montes NFTs que trazem representações de Bolsonaro, Lula, Ciro Gomes e outros em diferentes sets de colecionáveis. Uma busca por “Lula” no OpenSea apresentava 2.699 resultados em 24 de agosto, enquanto a busca por “Bolsonaro” 12.651. Os temas variam, explorando a rivalidade entre os candidatos ou simplesmente ovacionando um lado e atacando o outro, e os preços vão do lance mínimo (equivalente hoje a cerca de 87 reais) até custos exorbitantes quanto 30 ETH (ou R$ 293 mil). É difícil saber se alguém vai desembolsar alguma quantia por essas “obras”, e espero sinceramente que não (até onde pude checar todas estão com lances abertos sem comprador, por enquanto), mas a desgraça está aí para quem quiser bancar.
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