O que a turnê de despedida de Milton Nascimento diz sobre o mercado musical
A aposentadoria chega após seis décadas de estrada. Neste período, a tecnologia transformou a indústria e as carreiras dos artistas
A turnê de despedida dos palcos anunciada por Milton Nascimento é um sinal dos tempos. Sim, os medalhões da música brasileira também se aposentam. Um dos mentores do Clube da Esquina e com uma carreira solo de grande sucesso, o cantor e compositor pertence a uma importante geração da MPB que forjou o gosto musical de muitos públicos e que ainda solta a voz nas estradas. Com mais de 70 anos de idade, esses artistas se mantêm em plena atividade, cumprindo, muitas vezes, uma agenda puxada de shows pelo Brasil e pelo exterior, com viagens, períodos longe de casa e da família, e até fusos horários diferentes.
O vigor físico e o amor pelos palcos são combustíveis para que eles continuem emendando shows, festivais e turnês. Mas há também o fator financeiro. Com as mudanças que a indústria fonográfica sofreu nas últimas décadas, incluindo a queda nas vendas dos discos físicos – que até fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 podiam atingir a marca de milhões de cópias -, os shows se tornaram a principal fonte de renda de artistas e músicos.
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Novos discos continuam a ser lançados, agora nas plataformas de streaming, mas mais para justificar a criação de uma nova turnê, em que o artista une no repertório canções inéditas e sucessos da carreira, e sai pelo país e pelo mundo. Estrelas da música como o próprio Milton, Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano Veloso, Ney Matogrosso e Maria Bethânia recebem cachês que variam em torno de R$ 150 mil a R$ 300 mil, segundo uma fonte que atua no meio musical.
Essa combinação de fatores acaba estendendo a permanência deles nas estradas. Até o corpo invariavelmente impor os limites. E a hora de parar. Por conta da saúde e da fragilidade física, Rita Lee já havia tomado a decisão de deixar os palcos em 2012, aos 64 anos. Milton Nascimento quase antecipou sua aposentadoria anos atrás, revela seu filho Augusto Nascimento.
“Meu pai tinha decidido parar de cantar em 2015, 2016, por problemas de saúde. Ele foi morar comigo em Juiz de Fora. Eu estava terminando a faculdade de direito lá, e acabou que ele se recuperou, voltou a ter uma relação com a música naquele momento”, conta Augusto, que é empresário de Milton e diretor artístico da turnê de despedida, “A Última Sessão de Música”, que estreou no dia 11 de junho, no Rio, faz uma série de shows na Europa entre junho e julho, retorna em agosto para o Brasil e segue depois para os EUA. O repertório reúne músicas de todas as fases de sua carreira.
“Eu e nossa equipe decidimos tentar colocar ele de novo nos palcos, e quando a gente fez essa volta, eu já pensava no momento da parada, só que eu pensava em parar com ele bem, parando num momento feliz, de música e de celebração.” O momento escolhido foi agora, às vésperas de Milton completar 80 anos, em outubro. “Já é um projeto antigo meu com ele, que a gente já planejava, já conversava há bastante tempo. E é muito feliz saber que ele não parou lá atrás, em 2015, porque a gente viveu muita coisa linda e feliz nesse meio tempo, na estrada, nos shows”, completa Augusto.
A aposentadoria chega após seis décadas de estrada. Milton Nascimento lembra que começou como crooner aos 13 anos de idade e nunca mais parou. “Já são mais de 60 anos viajando pra cantar em tudo quanto é lugar, então acho que chegou a hora. Mas é como tenho dito sempre, me despeço dos palcos, da música jamais”, garante o compositor.
Milton reforça que a decisão é resultado de muita reflexão dele com o filho. E que não há nada que desabone a jornada na estrada. “Quando a gente está ali fazendo aquilo que mais ama, não tem como ver um lado ruim. Nos primeiros anos de carreira, claro que sim, existem muitas dificuldades que praticamente todo artista enfrenta no início. Mas a vida na estrada, o público, o carinho das pessoas, isso é uma coisa que não tem como não sentir falta.”
Segundo Augusto Nascimento, o pai não está cansado dos shows, mas, sim, da rotina de viagens. “Dos shows, ele gosta, é o que o moveu a vida inteira, é a paixão de uma vida. A estrada que é desgastante para ele. Ele tem muito medo de avião até hoje. Então, viajar para ele é uma questão, os shows, não.”
O empresário afirma ainda que a saúde de Milton em si não pesou nessa decisão. “A diabete está muito controlada, não tem nenhum problema cardíaco agora, então está tudo bem”, diz ele. “Acho que o que mais pesa é a idade, é permitir que ele viva outras coisas. A gente tem falado muito em passar um tempo na Dinamarca, que é um dos países a que ele mais gosta de ir, e a rotina na estrada não permite essas coisas.”
Em relação à questão financeira, Augusto comenta que o pai nunca teve ligação direta com essa, digamos, área de sua carreira. “Ele nunca fez música, nunca foi para a estrada por dinheiro, porque esse não é o lance dele. Acho que, se ele criou uma obra, uma história tão linda, um dos principais motivos disso é essa falta de conexão com esse mundo do dinheiro em que a gente vive. Ele nunca fez por isso, ele foi para a estrada por 60 anos única e simplesmente por amor.”
Para o produtor musical Fran Carlo, artistas consagrados não têm interesse em se aposentar não é por causa do dinheiro, mas por causa do amor pela música. “Eles gostam de trabalhar, então eles vão atuando, mesmo estando com uma idade um pouco mais avançada. Acho que nunca essas pessoas vão se aposentar, a não ser as que têm problema de saúde”, avalia o produtor, que já agenciou nomes como Peninha, Vânia Bastos, Oswaldinho do Acordeon e Almir Guineto.
“Artistas com uma carreira consolidada no mercado brasileiro e até internacional e que têm um patrimônio consolidado, eles param no momento que eles acham que é adequado para eles.” Ele faz um contraponto com a situação de músicos, cantores e cantoras que não conseguem a mesma projeção dos grandes nomes: “Eles continuam trabalhando, porque também amam o que fazem e precisam do dinheiro para sobreviver, mesmo estando com um pouco mais de idade”.
Fran Carlo concorda que os shows são hoje a principal fonte de renda dos artistas, mas vê os serviços de streaming se juntando a esse cenário. No entanto, para ele, os shows sempre foram fundamentais na vida deles. “Quando comecei minha carreira, há 33 anos, já eram importantes a venda de show e a venda de disco. Quando se vendia muito disco, você ganhava muito dinheiro. Mas, mesmo naquela época, quando eu era empresário do Peninha, por exemplo, nós sobrevivíamos mais com shows, porque era muito difícil vender 100, 200 mil discos”, conta. “Eu me lembro que, quando se estourava uma música, se vendiam milhares de discos, mas trabalhávamos mais e sobrevivíamos mais fazendo shows pelo país inteiro.”
Contemporâneo de Milton, Gil, Caetano, Gal, Bethânia, Ney e outros, Djavan encerrou recentemente a turnê “Vesúvio”. Aos 73 anos, ele garante que, enquanto estiver com disposição, vai continuar na estrada. “Antes de mais nada, eu gosto de estar no palco, de cantar e de estar diante do público. Essa interação é fundamental para mim, mas sei também que uma turnê envolve um sacrifício muito grande. Além das muitas viagens, aeroportos, hotéis, aviões e pessoas, é difícil ficar longe de casa, da família”, diz ele.
O cantor e compositor admite que isso tudo começa a ter um peso maior à medida que o tempo passa, mas que ainda lhe dá muito prazer e que ainda vai continuar nisso por algum tempo. “Não penso em aposentadoria, nunca pensei e não creio que precise pensar nisso tão cedo, pelo menos assim eu espero”, diz Djavan.