Análise: As joias árabes para Bolsonaro: um caso, vários desdobramentos

Situação quase corriqueira de confusão dos limites entre público e privado toma ares diferentes desta vez

O ex-presidente Jair Bolsonaro. Foto: Adriano Machado/Reuters
O ex-presidente Jair Bolsonaro. Foto: Adriano Machado/Reuters

Na última semana, foi veiculada uma notícia com certas consequências políticas. Reportagem do Estadão denunciou a tentativa do então presidente Jair Bolsonaro de permanecer com joias presenteadas pela Arábia Saudita. O episódio é exemplar de uma série de aspectos do mundo político brasileiro dos últimos anos, alguns positivos, que merece destaque e reflexão.

De início, aos fatos: desde que perdeu a eleição no ano passado, Bolsonaro ainda não encontrou um espaço político de atuação.

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Praticamente foragido do país, o ex-presidente tem feito aparições discretas e seu futuro ainda é incerto, sendo a cadeia uma possibilidade.

O medo de ser denunciado e ir preso parece dar a tônica de sua atuação. Enquanto isso, aliados próximos buscam não só alternativas para aproveitar o capital político organizado pela extrema direita, como também já ocupar o espaço deixado pelo ex-presidente.

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Assim, Michelle Bolsonaro aparece como alternativa que o partido de seu marido, o PL, tenta viabilizar para disputar um cargo em 2026.

Mesmo cedo, a opção em torno da ex-primeira-dama pode ser atrativa para os eleitores bolsonaristas e simpatizantes.

Porém, mal a ideia foi aventada, ela já sofre o primeiro revés. Na semana passada, foi feita a denúncia que envolve o nome de Michelle e os desmandos de seu marido no caso das joias sauditas.

Bolsonaro teria tentado por inúmeras vezes através dos seus ministros conseguir com que joias dadas de presente pelo governo saudita fossem incluídas no seu acervo pessoal e se tornassem presentes para sua esposa.

Agentes da Receita Federal teriam impedido o abuso das autoridades e feito a legislação prevalecer sobre os interesses pessoais dos envolvidos.

Mais do que um escândalo

O episódio é em si apenas mais um escândalo dentre os diversos que já foram levantados desde o início do ano envolvendo o governo anterior e continuarão a serem apontados, considerando a forma como o ex-presidente e sua família atuam.

Porém, este caso é um exemplo de diversas camadas do funcionamento institucional democrático brasileiro que merecem destaque, ressaltando ao menos quatro diferentes dimensões da operação democrática no país:

  1. os nebulosos limites entre a esfera pública e a privada;
  2. a relevância de agentes autônomos do Estado;
  3. a atuação midiática;
  4. a comunicação direta entre político e eleitor.

O público e o privado

A primeira dimensão – já bastante antiga – ressalta a dificuldade dos políticos em atuar dentro dos limites de seu papel. A confusão entre o que é público e privado no Brasil é um aspecto na atuação política que dá margem a ações corruptas.

No caso, se as joias são um presente entre países, elas pertencem ao Estado brasileiro e não deveriam fazer parte do acervo pessoal do atual mandatário ou de nenhum outro.

Moro e Dallagnol reviraram os presentes dados a Lula e Dilma em busca de identificar exatamente casos semelhantes.

Ainda que de cunho persecutório evidente, a preocupação é legítima: bens do Estado devem ser tratados como tal.

O que é do Estado não pode ser confundido com o que é de seus governantes.

Se a atuação dos políticos envolvidos é deprimente, a dos agentes da Receita Federal, ao contrário, parece exemplificar o que se espera de agentes autônomos do Estado. Até aqui, as informações dão conta de que estes agentes fizeram prevalecer a lei.

Qualquer pessoa que já tenha feito uma viagem internacional sabe como atuam os agentes alfandegários quando solicitam aos passageiros que mostrem suas bagagens e precisam declarar ou pagar impostos e multas dos bens que trazem consigo ao país.

No caso, o ex-ministro Bento Albuquerque e seu assessor Marcos Soeiro tentaram entrar no país trazendo estas joias que foram apreendidas por não cumprirem a legislação, conforme alega a Receita Federal.

Ainda que o caso não esteja totalmente esclarecido – e notícias já dão conta de que as peças apreendidas são apenas parte do que a comitiva trazia e não se sabe o motivo da liberação das demais –, é de se imaginar o que os agentes alfandegários teriam feito nesta situação se a Receita Federal não fosse formada por funcionários estáveis e autônomos.

A influência política teria meios mais claros de alterar o comportamento destes indivíduos e, neste caso, confundir ainda mais as esferas pública e privada.

O distanciamento do âmbito político garantido pela estabilidade destes agentes é fundamental para que os limites entre as dimensões pública e privada sejam preservados.

Vimos o ex-presidente alterar o comando da PF ao longo de seu governo no que se entendeu à época como um movimento de ultrapassar estes limites.

Sistemas de pesos e contrapesos são fundamentais para que nenhum grupo, órgão ou categoria tenha prevalência sobre as demais e, assim, facilitem a aplicação da legislação vigente.

A autonomia dos interesses políticos precisa ser estabelecida e garantida para a preservação dos interesses do Estado.

Atuação da mídia

De outra parte, a atuação da mídia também merece destaque neste episódio. O timing da denúncia é bastante prejudicial para o clã Bolsonaro.

No momento em que Michelle tem sua carreira política seriamente aventada, a notícia já dá mostras de que seu caminho não será tranquilo.

Não se pode afirmar que as consequências políticas motivaram a divulgação da notícia, mas não há dúvidas de que a imprensa brasileira tem entendido a extensão de seu papel no contexto político atual.

Se no final do século passado, as redes de TV, notadamente a TV Globo, possuíam altos índices de audiência e conseguiam disputar com os jornais impressos a pauta do contexto político nacional, agora a pulverização dos meios de comunicação e do acesso à informação reverteram o cenário e aumentaram a pluralidade de veículos e formas de se obter notícias.

Ainda que diversos veículos tradicionais continuem a atingir número muito maior de pessoas, diferentes plataformas e formatos digitais acabam por disputar versões e interpretações sobre os fatos.

Esta pulverização reduz o impacto de notícias polêmicas, com consequências políticas bastante claras. Ainda assim, o caráter sensacionalista das manchetes em busca de acesso e de atenção da população parece ser a tônica e acabamos por só ver aumentar o número de notícias que mudariam o curso da história, mas que acabam por se tornar apenas mais um escândalo, não importando a gravidade do que foi relatado.

Rede organizada pela extrema direita

O último aspecto deste episódio tem estreita relação com anterior. A rede informacional organizada pela extrema direita, muito bem operada pela família Bolsonaro, será ativada para criar uma interpretação que os exima da culpa.

A informação fluirá diretamente aos cidadãos interessados, que ainda duvidarão da credibilidade dos veículos mais tradicionais. Essa versão será comprada por parcela da população, que tem sido bastante atuante nos últimos anos.

A rede não deve ter os mesmos recursos de antes e, então, sua capacidade de mobilizar será menor. Ainda assim, é um ativo importante que continuará a operar e, nos próximos dias, servirá de apoio para uma versão deste episódio que argumentará que tudo não passa de fake news, chegando possivelmente até a uma interpretação que culpe direta e tão somente os envolvidos, no caso, o ex-ministro e seu assessor.

A tentativa será de mais uma vez mostrar que Bolsonaro não tem culpa de nada e tudo não passa de mais um episódio de difamação em sua árdua luta contra o sistema. O modus operandi tem funcionado e não deve ser diferente desta vez.

O papel dos agentes públicos

Uma situação quase corriqueira de confusão dos limites entre o que é público e privado no país, que povoam a nossa história política desde sempre, toma ares diferentes desta vez.

Há agentes públicos que atuam com vistas a fazer prevalecer a lei e se negam a se curvar aos interesses pessoais do dirigente de plantão, o que felizmente vem ocorrendo com mais frequência.

Há uma imprensa cuja extensão do impacto de atuação vem sendo modificado pela profusão de meios de comunicação à disposição das pessoas e vê como alternativa em busca de audiência, tratar muitos casos como “bombásticos” e capazes de alterar o curso dos acontecimentos, mas que são superados pelo novo escândalo dias depois.

E a relação direta entre políticos e eleitorado, formato atualmente utilizado pela extrema direita para atuar e manter-se relevante.

Um caso singular relevante mas que muito tem de ordinário na democracia brasileira contemporânea.

Por GLAUCO PERES, cientista político e economista

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