Governo dos EUA vê afronta em declarações de Lula sobre Washington na China

Em seu encontro com Joe Biden em fevereiro, presidente não usou a Casa Branca como palco para fazer críticas a Pequim ou a Moscou

O presidente da China, Xi Jinping, recebe no Grande Palácio do Povo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No encontro, os dois assinaram uma série de acordos comerciais e de parceria. Foto: Ricardo Stuckert/PR
O presidente da China, Xi Jinping, recebe no Grande Palácio do Povo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No encontro, os dois assinaram uma série de acordos comerciais e de parceria. Foto: Ricardo Stuckert/PR

Apesar de se declarar neutro na disputa geopolítica entre Estados Unidos e China, o Brasil parece ter se alinhado claramente aos chineses e à Rússia. Essa é a percepção — e o receio — de integrantes do governo americano ouvidos pela Folha, que alegam que os brasileiros não só não têm prezado pelo equilíbrio em seus posicionamentos, como teriam adotado uma clara oposição a Washington.

A reportagem entrou em contato com o Itamaraty com um pedido de comentário pouco antes da publicação deste texto, mas ainda não houve retorno.

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De fato, em sua visita à China, encerrada neste sábado (15), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez uma série de críticas aos EUA — disse que o país incentiva a continuidade da Guerra da Ucrânia, atacou a hegemonia do dólar e insinuou que os americanos pressionam o governo brasileiro a boicotar a China. Em seu encontro com Joe Biden em fevereiro, Lula não usou a Casa Branca como palco para fazer críticas a Pequim ou a Moscou.

As fontes americanas afirmam não pressionar o Brasil a não ter relações com o regime de Xi Jinping ou a escolher um dos dois países. Os próprios EUA têm grande intercâmbio com a China, argumentam. Mas entendem que o presidente brasileiro e sua equipe de política externa, liderada pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, e o assessor especial de Lula, Celso Amorim, adotaram um tom aberto de antagonismo aos EUA.

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Um dos aspectos mais problemáticos, na visão de Washington, é Lula enxergar os EUA como um obstáculo para o fim da guerra na Ucrânia — e a China e a Rússia como os países que vão levar a paz ao conflito. Em Pequim, o petista afirmou que é preciso que os americanos “parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz, para a gente convencer o Putin e o [Volodimir] Zelenski de que a paz interessa a todo mundo e a guerra só está interessando, por enquanto, aos dois”.

Também despertou preocupação Lula declarar que Zelenski, presidente do país invadido, “não pode […] ter tudo” dias antes da viagem à China, em encontro com a imprensa. Na ocasião, ele também afirmou que “Putin não pode ficar com o terreno da Ucrânia”, mas que “talvez se discuta a Crimeia” — o que poderia indicar que, na visão do petista, Kiev deveria abrir mão do território, anexado por Moscou em 2014, antes da invasão que culminou com o conflito atual.

Por fim, dizem as fontes americanas, o governo brasileiro está repetindo fielmente o discurso do Kremlin — que após invadir um país, violando sua soberania e desrespeitando a Carta da ONU, ainda estaria cometendo inúmeros crimes de guerr

Na visão de Washington, o Brasil deveria ter um papel nas negociações de paz. Eles alegam, no entanto, que as declarações de Lula minam a credibilidade do país como um mediador equilibrado e neutro.

Um funcionário do governo americano argumenta ainda que o engajamento do Brasil com a Ucrânia tem sido muito menor do que com a Rússia, o país agressor. E menciona a visita do chanceler russo, Serguei Lavrov, ao Brasil nesta semana.

Lula também fez questão de visitar a Huawei, gigante de telecomunicações que é alvo de sanções dos EUA. O governo americano pressionou a gestão Bolsonaro a barrar a empresa no leilão do 5G no Brasil, mas não conseguiu. Os americanos alegam que ela compartilha dados sigilosos com o governo chinês.

Lula disse que a visita à Huawei tinha como objetivo “dizer ao mundo que não temos preconceito na nossa relação com os chineses”. “Ninguém vai proibir que o Brasil aprimore a sua relação com a China”, afirmou ele, em Pequim.

O petista também reuniu-se com outras autoridades chinesas e afirmou que deseja “elevar o patamar da parceria bilateral e equilibrar geopolítica mundial”, ecoando a retórica da China de defesa da multipolaridade, que se traduziria em uma redução da influência dos EUA.

Washington diz que os EUA compartilham os valores de defesa da democracia com o Brasil — que, por isso, defenderam o respeito ao processo eleitoral brasileiro no ano passado, quando o então presidente Jair Bolsonaro ameaçou não aceitar o resultado das eleições. Eles afirmam que China e Rússia não tiveram, nem têm, o mesmo tipo de preocupação.

Indagados sobre a falta de resultados concretos na viagem de Lula a Washington, e a frustração do governo brasileiro com o fato de o presidente Joe Biden não ter se comprometido com uma contribuição financeira mais ambiciosa com o Fundo Amazônia, os funcionários americanos afirmam que o país não promete sem ter certeza de que irá cumprir.

Em contraste, eles prosseguem, a China já anunciou inúmeros investimentos no Brasil que nunca se concretizaram. Por exemplo, houve anúncios de um fundo de US$ 50 bilhões para investimento chinês em infraestrutura no Brasil, durante o governo Dilma, e de uma ferrovia transcontinental que ligaria o oceano Atlântico ao Pacífico. Nada disso saiu do papel.

Durante a viagem dos últimos dias, o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, um dos presentes na comitiva, anunciou que a instituição e o Banco da China assinaram um acordo de R$ 6 bilhões para investimentos em infraestrutura e inovação tecnológica. E o Ministério da Fazenda estimou que os acordos fechados na viagem gerem R$ 50 bilhões em investimentos chineses no Brasil.

Além do ceticismo em relação à concretização dos investimentos, os americanos mencionam supostos métodos predatórios dos chineses em seus financiamentos de infraestrutura, apontando para os inúmeros países pobres com alto endividamento com Pequim.

Para eles, o fato de Lula ter defendido a criação de uma moeda dos Brics não é uma preocupação, uma vez que não ameaçaria, no curto ou médio prazo, a hegemonia de dólar. Mas consideram essa mais uma atitude de confrontação, uma vez que o presidente brasileiro mencionou diretamente o dólar e o governo americano.

“Nossos amigos americanos têm uma preocupação contra qualquer coisa nova que se crie, em se tratando de banco ou de moeda, porque eles acham que queremos acabar com o dólar como referência para o comércio. Foi assim quando se criou o euro, os EUA ficaram muito ofendidos”, disse na ocasião.

Uma das fontes também aponta que o Brasil não criticou oficialmente as notícias sobre vários espiões russos que se passaram por brasileiros, algo que deveria causar preocupação.

Por Patrícia Campos Mello, Folhapress — publicado no Valor Econômico em 15/04/2023 18h00.

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