Reforma tributária é prioridade do governo Lula; mas por quê?

Objetivo é facilitar a vida do consumidor e das empresas, mas medida enfrenta resistência

A aprovação da reforma tributária pode sinalizar que o governo Lula quer uma economia nos trilhos pelos próximos três anos. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters
A aprovação da reforma tributária pode sinalizar que o governo Lula quer uma economia nos trilhos pelos próximos três anos. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Brasil e reforma tributária é um combo que, há 25 anos, permeia Brasília. Presidentes como Fernando Henrique e o próprio Lula — em seus dois primeiros mandatos — criaram propostas para reformular o sistema de impostos. Não deu certo — pelo menos até agora.

De volta à presidência, Lula, junto à sua equipe econômica do Planalto, chefiada pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad, definiu a reforma tributária como prioridade ‘número um’ do mandato. E começaram pela difícil tarefa de aprovar a reforma tributária de impostos sobre o consumo.

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Afinal, por que apostar tanto na reforma? Especialistas entrevistados pela Inteligência Financeira te respondem.

No governo Lula, reforma tributária é ‘prioridade um’

Além de Fernando Haddad, a ministra Simone Tebet, do Planejamento, deixou claro que o governo pretende aprovara reforma tributária sobre o consumo dentro do 1º semestre deste ano.

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A pauta da reforma tributária é prioridade ‘número um’ de da Fazenda. Não à toa, a aprovação pode sinalizar ao investidor brasileiro e estrangeiro de que o governo Lula quer uma economia nos trilhos pelos próximos três anos, algo que está atualmente em xeque após os embates entre Lula e o presidente do Banco Central.

Para especialistas, o governo acerta ao tentar reformular os impostos sobre o consumo primeiro. O atual sistema, na visão dos técnicos, tem defasagens que limitam o crescimento econômico, torna a cadeia produtiva das empresas ineficiente e contribui para a chamada ‘guerra fiscal’ entre Estados.

Por que a reforma tributária é prioridade de Lula e Haddad?

Melina Rocha, diretora na Universidade de York (YorkU) e coordenadora-executiva do projeto IVA (NEF/FGV), afirma que o sistema de cinco impostos sobre o consumo “causa insegurança judicial ao contribuinte”.

O sistema atual usado por entes para taxar o consumo de bens e serviços é composto por cinco tributos:

  • ICMS estadual
  • ISS municipal
  • IPI
  • PIS
  • Cofins

A princípio, todos os impostos taxam bens de consumo materiais e imateriais, além de serviços. Mas essa base fragmentada em cinco impostos acaba gerando uma “corrida ao fundo do poço”, afirma Melina.

A corrida é pela alíquota mais baixa possível de impostos como ICMS. Cada Estado oferece, além da taxa reduzida, benefícios fiscais onde a taxa incide na origem do produto. É uma competição para atrair empresas, fábricas e linhas de produção.

“Isso gerou a guerra fiscal entre os entes. Com o ICMS sendo cobrado na origem, cada Estado oferece desonerações para produção em diferentes setores da Economia. O resultado é uma erosão da arrecadação tributária e a competição de investimento por meio do sistema de impostos”, afirma Melina.

Além da guerra fiscal, o atual modelo tributário diminui a transparência sobre o quanto do preço produto adquirido é, na verdade, uma fatia dos impostos. Isso prejudica a visão do consumidor sobre o sistema, diz Bento Antunes de Andrade Maia, economista e pesquisador do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal).

Reforma pode aumentar PIB em 20%

Bernard Appy, secretário especial da Fazenda para a Reforma Tributária, disse à IF que uma reforma bem-feita sobre a tributação do consumo pode elevar o PIB brasileiro em 20% nos próximos 15 anos.

Appy citou um estudo feito pelo pesquisador e economista do FGV-Ibre, Bráulio Borges, que acrescenta que o PIB pode crescer 24% no longo prazo em decorrência da reforma tributária. O impacto positivo no Produto Interno Bruto seria gerado com a eliminação de benefícios fiscais e desonerações de investimentos sobre estoque de capital fixo — insumos usados pelas empresas na etapa de produção.

O que é um IVA, base da reforma tributária?

Os projetos da reforma tributária que circulam no Congresso se baseiam no Imposto de Valor Agregado, o IVA.

O IVA é um imposto não-cumulativo e plurifásico. Parece complexo, mas na verdade o imposto substituiria todos os cinco tributos sobre consumo por toda a cadeia produtiva de prestadores de serviço e bens de consumo, tornando o inferno astral tributário mais simples para o contribuinte.

O modelo do IVA é considerado o tipo mais moderno de lei tributária no mundo, e cerca de 174 países adotam o imposto, de acordo com Melina. Ele tem uma alíquota única, assim como um modelo de geração de crédito.

No sistema de imposto único, o tributo é recolhido ao longo da cadeia produtiva, mas ele incide apenas sobre o consumo. Por não acumular cobranças em outras etapas, a alíquota que incide sobre o preço do produto corresponde a todo o valor arrecadado.

Como o funciona o sistema de créditos do IVA?

O crédito no IVA funciona da seguinte maneira: cada etapa da cadeia de um produto, desde a importação à venda, é tributada pelo IVA. Desta forma, diferentemente de como ocorre hoje, o IVA vai gerando créditos que podem abater o valor daquele produto na venda.

Se a alíquota fixada pelo IVA for de 10%, por exemplo, e um vendedor oferecer um produto a R$ 80, ele teria que vender por R$ 88, recolhendo aos cofres R$ 8. Como explica o professor de pós da FGV-SP e coordenador do NEF/FGV, Gustavo Amaral, essa arrecadação gera crédito para abater o valor da próxima compra.

“Se um vendedor em seguida comercializa um produto por R$ 100, a alíquota do imposto elevaria o preço em R$ 10. Mas com o sistema do IVA, pela venda anterior ter gerado R$ 8 em crédito, o varejista, mesmo vendendo aquele produto por R$ 110, terá de recolher apenas R$ 2 de imposto”, aponta Amaral.

Bernard Appy vem chamando o sistema de crédito de ‘cashback tributário’.

Quais são as propostas no Congresso?

Tramitam simultaneamente no Congresso duas propostas de reforma tributária, no modelo de Proposta de Emenda à Constituição. O código das PECs é 110/2019 e 45/2019.

Ambas as PECs foram criadas em 2019, mas tramitam em lados opostos do Congresso Nacional. A PEC 110 aguarda o parecer da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, enquanto a PEC 45 espera ser pautada para votação na Câmara dos Deputados.

Mas há diferenças importantes entre as duas propostas de reforma tributária.

O que muda entre PEC 110 e PEC 45?

A PEC 110, cujo relator é o ex-senador Roberto Rocha (PSB-MA), cria um modelo de IVA duplo, com um imposto único destinado aos Estados e municípios, o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), e outro destinado à União, o CBS (Contribuição sobre Operações com Bens Materiais e Imateriais e Prestações de Serviços).

O IBS substituiria na incidência tributária o ICMS estadual e o ISS municipal, enquanto o CBS seria o substituto do IPI, PIS e Cofins.

Na PEC 45, que tem o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) como relator, o IBS funciona no modelo de IVA único. O destino da arrecadação seria dividido entre União, Estados e municípios de acordo com o destino da mercadoria ou serviço. Hoje o ICMS taxa o produto na origem.

Outra grande diferença da PEC que circula no Senado é a adoção do sistema de crédito. Na PEC 110, o crédito entra em ação no momento de cobrança do imposto, e não quando ele é recolhido, como define a PEC 45.

Por fim, a concessão de benefícios ou de regimes favorecidos também é diferente entre os projetos de emenda.

Enquanto a PEC 45 não oferece nenhum regime especial e veda benefícios tributários, a PEC 110 propõe a isenção ou redução da alíquota do IBS, além de devolução do imposto e cadastro diferenciado, para setores específicos.

Roberto Rocha elencou ‘segmentos socialmente relevantes’ a serem beneficiados pela medida com redução de alíquota do IBS.

A lista inclui o agronegócio, Educação, Saúde, transporte público ou bens e serviços adquiridos por empresas beneficentes. A PEC 110 também define setores com regime favorecido de incidência do IBS, como bens imóveis e serviços financeiros.

Semelhanças entre as propostas de reforma tributária

Por outro lado, as duas propostas mantêm a tributação do Simples Nacional sem alterar o sistema ou a carga tributária sobre pequenas e médias empresas.

O tratamento diferencial do regime tributário para compras feitas pelo próprio governo e o retorno de arrecadação do imposto para famílias de baixa renda são dois pontos comuns entre os projetos.

As duas PECs também preveem a criação do IS, um imposto especial sobre externalidades — produtos ou serviços prejudiciais à saúde, como álcool e cigarros, e ao meio ambiente, como combustíveis fósseis.

Entenda a resistência contra a reforma tributária

Apesar do amadurecimento da discussão do projeto da reforma tributária no Congresso, avaliam especialistas, a resistência contra a aprovação dos projetos perdura.

Em relação aos tributos do consumo, um dos setores da economia mais resistentes à reforma é o de serviços, aponta Gustavo Amaral, da FGV-SP.

“[Serviços] resiste a todas as propostas de unificação da tributação do consumo com argumentos bastantes questionáveis, sendo um deles de que o ramo é o que mais gera empregos na economia. O próprio setor vem implementando mais tecnologia e empregando menos. Além do que, a maioria dos funcionários é empregada pelo Simples, regime que a reforma não altera”

Gustavo Amaral, pesquisador da FGV-SP

O setor de agronegócio, destaca o advogado, também é historicamente contrário à reforma tributária no modelo de IVA único sem benefícios de redução da alíquota.

Municípios

Como a reforma limita benefícios fiscais concedidos por Estados e municípios, as bancadas de entes federais fazem coro contra a reforma no Congresso há anos de discussão, destaca Melina Rocha.

Mas a especialista é mais otimista. Ela afirma que o apoio da Comsefaz (Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e do DF) à PEC 110 é simbólico. A entidade chegou a elaborar a PEC Brasil Solidário em parceria com o CCiF, mas a proposta não seguiu para o Congresso.

O apoio da Comsefaz não é importante somente para aprovar a reforma, mas também para sinalizar uma mudança no humor dos estados e municípios mais ricos, geralmente contrários à aprovação. Mais de 90% dos municípios menores também apoiam a reforma tributária, diz Melina.

“Temos ainda a rejeição de alguns municípios maiores, que querem manter o ISS porque alegam perda de autonomia”. O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSB-RJ), por exemplo, já se pronunciou contra o fim do ISS. Em suas redes sociais ele criticou Bernard Appy por sugerir o fim do imposto municipal, chamando-o de “técnico autoritário”.

Reforma tributária vai aumentar os impostos?

Uma das principais preocupações do governo é manter a arrecadação da Receita Federal sem aumentar a carga tributária.

Para Amaral, da FGV, é importante que o governo “tenha sensibilidade” para saber os limites da reforma tributária sem elevar o aumento na carga. Por outro lado, o advogado afirma que “não há ambiente” para uma diminuição da arrecadação.

“A ideia é trocar o tributo e não a carga”, diz. “Tem mais a ver com o tamanho do Estado que queremos ter. Essa transição [entre tributos] tem que ser gradual, porque existem investimentos que levaram em conta incentivos fiscais”, completa.

Bento de Andrade Maia, economista e pesquisador do CCiF, frisa que o quanto antes a alíquota do IVA for definida, maiores são as chances da reforma for aprovada sem o aumento de carga. “Se houver muita distribuição de benefícios na fase final do projeto, a chance é menor.”

Já Melina Rocha aponta que as propostas que circulam no Congresso tem uma espécie de “mecanismo de trava” que impedem que a carga tributária aumente.

A calibragem da alíquota do IBS, por exemplo, será feita durante o período de transição da reforma, que está previsto para 6 anos no caso da PEC 45 e 7 anos para a PEC 110.

O que muda para o consumidor? E para as empresas?

O consenso entre especialistas é de que a reforma tributária facilitaria a vida do consumidor, mas principalmente das empresas.

A desoneração da cadeia produtiva, na visão dos técnicos, diminuiria a insegurança jurídica de investimentos feitos por empresas, cuja única obrigação seria a de emitir nota fiscal.

Além disso, afirma Melina Rocha, a reforma acabaria com as distorções tributárias de cada Estado porque, caso haja uma diminuição do IVA, afetando o sistema de crédito. Portanto, o consumidor pagaria por um preço maior no instante da compra caso a alíquota fosse reduzida.

A desoneração da cadeia também significaria o fim dos impostos sobre exportações, eliminando também a desvantagem do produto brasileiro no exterior. “Empresas em pé de igualdade e que podem trabalhar com mais eficiência e produtividade. Isso tende a reduzir o custo operacional das companhias”, afirma Melina.

Já ao consumidor, diz Maia, a reforma tributária traz duas grandes vantagens. A primeira é o aumento de renda das famílias de uma forma geral, principalmente as de menor renda.

A segunda é a transparência em torno do quanto do bolso é usado para pagar o imposto. “Hoje as pessoas não sabem o quanto elas pagam de tributo no consumo, porque é muito confuso. [Com a reforma] elas vão passar a saber e a entender, gerando um sentimento de pertence e cobrança frente ao governo”, diz o economista do CCiF.

“O mais importante da reforma é ter impacto no crescimento econômico. Óbvio que a medida deve gerar mais isonomia, com queda no contencioso e burocracia, e isso não é um mero perfeccionismo técnico. A ideia é melhorar o sistema para empresas investirem mais, para empresas terem mais segurança jurídica.”

Bento de Andrade Maia, pesquisador do CCiF
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