Por que os novos jogos de tabuleiro vêm conquistando o público adulto
No Brasil, jogos de tabuleiro como um todo correspondem a cerca 10% do faturamento do setor de brinquedos, que movimenta anualmente R$ 4 bi
Numa indústria do entretenimento em que os jogos digitais dominam, um segmento bem analógico, o dos jogos de tabuleiro, tem crescido. Mais que isso, acelerou a expansão durante a pandemia.
No imaginário de muitos, a menção a jogos de tabuleiro logo remete a Banco Imobiliário ou War, brinquedos presentes no mercado nacional há décadas, sinônimos de amigos e família reunidos em torno de uma mesa para partidas não raro de longuíssima duração. Mas o cenário vem mudando desde meados da década passada.
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Isso está relacionado à chegada ao Brasil das chamadas versões modernas desses jogos, em que o acaso do rolar de dados tem um papel menor e o jogador deve lançar mão de uma tomada de decisões mais estratégica. Outra característica é a cooperação ganhando mais relevância em relação à competição no grupo. Mirando um público mais adulto – alguns podem custar acima de R$ 2 mil -, sem excluir o infantojuvenil, jogos do tipo chegaram a tornar-se fenômenos.
No Brasil, jogos de tabuleiro como um todo correspondem a cerca 10% do faturamento do setor de brinquedos, que movimenta anualmente R$ 4 bilhões. Editoras como a Galápagos, criada em 2009, viram seu faturamento com o nicho dos jogos modernos dobrar de 2019 para 2020. A explicação estaria no confinamento imposto pelas restrições sanitárias e à adesão ao home office.
“Passamos a ficar mais dentro de casa e sem ter muito o que fazer. Descobrimos, em especial as famílias, que algumas atividades que em princípio já eram comuns da vida doméstica, como assistir a séries e filmes em streaming, não reuniam as pessoas. Precisamos achar formas de conviver”, argumenta Yuri Fang, CEO da Galápagos.
Uma das primeiras variantes desses novos jogos nasceu em 1995, na Alemanha. Catan, do designer Klaus Teuber, exige que seus participantes negociem mercadorias, construam estradas e cidades inteiras, com o objetivo de dominar a ilha que dá nome ao jogo. Somente na década seguinte, no entanto, a nova modalidade se tornou um fenômeno, em especial na Europa e nos EUA, países em que esses novos passatempos passaram a aplacar o tédio durante o rigoroso inverno, como na quarentena pandêmica.
A Alemanha, a propósito, reúne dois dos mais antigos eventos relacionados ao universo dos tabuleiros no mundo: a Spiel (jogo, em alemão), feira que completa 40 anos em 2023 e apresenta alguns dos cerca de 5 mil lançamentos que ocorrem a cada ano. Mais antigos ainda são o Spiel des Jahres (jogo do ano), premiação criada em 1978, e a convenção Gen Con, de 1968, que hoje ocupa o primeiro lugar no ranking de número de visitantes a eventos em Indianápolis (EUA), deixando as corridas das 500 Milhas em segundo lugar.
No Brasil, os jogos de tabuleiros modernos começaram a chamar a atenção há pouco mais de uma década. Havia um único site dedicado ao tema – A Ilha do Tabuleiro, inspirado no americano BGG (BoardGameGeek) -, que já não existe. Veio também uma proliferação de blogs, como E Aí, Tem Jogo?, ainda no ar. Com o dólar em baixa, os importados começaram a chegar ao país, e os poucos adeptos também os revendiam em redes sociais.
O ponto de inflexão veio na década seguinte. Fã do escritor norte-americano H. P. Lovecraft, Ricardo Gama comprou em 2007 um jogo de tabuleiro inspirado em suas histórias de fantasia e horror, tornando-se em pouco tempo um fã da modalidade, chegando a ter uma coleção com 800 unidades. Em 2011, criou o podcast Ludocast, que em 2013 viria a se desdobrar no Ludopedia, site com rankings, censos do segmento e um marketplace, em que afirma ter uma média mensal de R$ 700 mil em transações.
“As informações que havia eram todas vindas de sites em inglês ou outras línguas. Viemos para suprir essa lacuna”, conta Gama. “Mas tinha outro problema para estes jogos: como eram importados, era necessário que todos em um grupo de amigos, por exemplo, falassem inglês, o que nem sempre acontecia. Tinham dinheiro para comprar, mas não podiam jogar. E é aí que entrou a Galápagos, lançando jogos, fazendo contratos com empresas de fora e traduzindo-os”, conta.
Naquele mesmo ano, a Galápagos foi a pioneira na tropicalização desses jogos, com a tradução de grandes sucessos como Summoners Wars e Zombicide. E o brinquedo começava a ser alçado à categoria de hobby. Fang lembra que, até os anos 1990, na maioria dos jogos de tabuleiro, “atirávamos um dado, que caía numa casa e levava a uma única tomada de decisão”. No caso de Banco Imobiliário, por exemplo, uma compra.
“Era uma experiência muito limitada, e o resto era aleatoriedade”, argumenta o empresário. “As pessoas não eram os protagonistas das partidas, mas sim os próprios jogos. Ficavam ali como meros peões, mesmo. Nos jogos modernos, as mecânicas e dinâmicas diferentes tentam devolver ao jogador o protagonismo.”
Logo surgiram outras editoras em solo brasileiro, como a Meeple BR, criada em 2015. À frente da empresa, Diego Bianchini ressalta outros dois aspectos que levaram à popularização dos boardgames: as temáticas variadas e uma espécie de resposta analógica aos excessos do universo de videogames. Em tempo: jogos de tabuleiro são usados por psicoterapeutas como estratégia de redução de danos para crianças ou adolescentes com dependência.
Bianchini conta que os temas são direcionados a todas as idades e a públicos com interesses distintos. “Se você me perguntar se existe um jogo sobre terraformar Marte, existe. Sobre vikings, cidades antigas, dinossauros, o que você imagina. E os tabuleiros voltam agora também pela necessidade de interação humana. Estamos presos a telas e conexão por aplicativos, de modo que famílias e amigos veem aí uma chance de compartilhar momentos.”
Entre as traduções dos originais importados, os jogos adaptados de franquias têm grande peso. De Harry Potter aos super-heróis da Marvel, passando por mangás ou ainda uma versão de “The Walking Dead”, com “miniaturas plásticas lindas, algo que o mercado não estava acostumado a ver”, segundo Bianchini. Sim, a qualidade do design e da produção das peças também é um aspecto importante destes novos brinquedos.
Mas nem só de traduções vive o mercado dos jogos modernos no Brasil. A editora mineira Conclave, por exemplo, surgiu há quase 20 anos com foco em RPG, tem hoje 90% de seu faturamento em brinquedos da nova modalidade, e seu primeiro lançamento foi Midgard, sobre mitologia nórdica, mas desenvolvido pelo próprio criador da empresa, Cristiano Cuty. Esses jogos, diz ele, têm outros dois fatores de sucesso: aprendizado fácil e tempo controlado.
“Isso sempre foi uma reclamação por parte das pessoas. Décadas atrás havia a queixa de que o War, por exemplo, era sempre muito demorado. Banco Imobiliário não terminava nunca. Agora, a duração mostrada na caixa varia um pouco, mas fica ali numa faixa de erro, para cima ou baixo.”
Os autores nacionais também entraram na mira de outras editoras, como a Meeple BR, vencedora do prêmio de melhor jogo de 2021 da Ludopedia, para Brazil: Imperial, que já tem garantido versões em 16 idiomas. E até mesmo a gigante Estrela, que tem o Banco Imobiliário em seu catálogo desde 1944, passou a investir no nicho. Segundo Aires Fernandes, diretor de marketing da empresa, entre veículos (carrinhos, ambulâncias etc.), blocos (como Lego) e tabuleiros, o terceiro segmento foi o que mais cresceu de 2020 para 2021.
“Eles ainda são um nicho dentro do negócio. Mas isso nos chamou a atenção, tanto que estamos entrando no segmento e criamos, no ano passado, a Premium Games, uma divisão que investe em autores nacionais, mas que não necessariamente refletem brasilidade”, diz, citando como exemplo Front Total, que tem a Segunda Guerra como tema, e Mixtape, um jogo um tanto nostálgico, em que os participantes simulam a experiência de gravar fitas cassetes.
Fernandes diz que, “do ponto de vista sociológico”, o jogo de tabuleiro é um contraponto ao avanço da gamificação que aconteceu com as gerações digitais, em que você joga contra o brinquedo eletrônico ou si mesmo, ou ainda amigos a distância. “Mas o homem é um animal social. E o tabuleiro é um ótimo instrumento de socialização”, afirma.