Startups lançam táticas para tornar agricultura mais sexy

No lugar do sol na cabeça do raiar ao fim do dia, uma constante iluminação psicodélica. Em vez do calor inclemente de uma tarde de verão, ou do frio atípico que São Paulo ocasionalmente enfrenta, agradáveis e constantes 23°C – e faça chuva, faça sol, que ficam do lado de fora. Diferentemente da maioria dos horticultores, os responsáveis pelas hortaliças da Pink Farms também não podem reclamar de dor nas costas, pois as mudas da companhia ficam enfileiradas em prateleiras e um elevador portátil que dá acesso a todas elas com conforto.
A localização é outro diferencial e tanto: em 15 minutos de carro, os funcionários da empresa, localizada na Vila Leopoldina, na capital paulista, chegam a alguns dos bairros mais badalados da cidade, como Perdizes e Vila Madalena. “O estilo de vida que nosso modelo de negócio permite é extremamente diferente do que é imposto pela horticultura tradicional”, diz Mateus Delalibera, de 33 anos, o CTO da startup, em atividade desde 2017.
É também um dos três fundadores. Os outros dois são Rafael Delalibera, o CFO, seu irmão gêmeo, e Geraldo Maia, de 30 anos, que exerce o cargo de CEO. O trio de engenheiros resolveu tentar a sorte na agricultura após constatar que o setor também pode ser sinônimo de tecnologia. “É a mesma razão que tem levado muitos jovens a se interessar pelo ramo. E eles não precisam mais levar, necessariamente, uma vida no campo”, completa o CTO.

Das startups brasileiras determinadas a revolucionar o agronegócio — e, de quebra, a rejuvenescer o estilo de vida associado ao setor —, a Pink Farms é uma das mais conhecidas. Apresentada como a maior fazenda vertical e urbana da América Latina, ela ocupa um galpão de 600 m2 com pé-direito de sete metros. É a mesma altura de suas duas torres de produção, que ocupam uma parte pequena do espaço. Inaugurada em novembro deste ano, a segunda delas elevou a capacidade produtiva para 3 toneladas por mês, comercializadas em 90 endereços da cidade, de supermercados como o Pão de Açúcar a restaurantes moderninhos, a exemplo da Hospedaria, na Mooca.
Hoje com cerca de 30 funcionários, a empresa planta três tipos de alface e microgreens – como são chamadas as versões bem pequenas de hortaliças e companhia – de alho-poró, couve, cenoura, mostarda, rabanete, rúcula e repolho roxo. Novos produtos, como agrião, rúcula e espinafre, devem começar a ser colhidos até meados de fevereiro.
A iluminação rosa que dá nome à agtech, como as startups do tipo são chamadas, simula a luz solar, acelerando a fotossíntese das hortaliças. Graças ao sistema verticalizado, a companhia consegue produzir na pequena área de que dispõe o mesmo tanto que um horticultor tradicional faz com uma área de cultivo quase 170 vezes maior – isso também se deve ao ciclo adotado, mais curto que o de praxe, e ao adensamento das mudas.
A economia de água em relação ao método tradicional é de 95% e a quantidade de fertilizantes utilizada é 60% menor. Agrotóxicos são vetados e a ausência de marcas de inseto e de pragas se explica pelos protocolos rígidos de higiene impostos a quem se aproxima das mudas. Outro atributo que enche os sócios de orgulho é a localização da Pink Farms, próxima dos estabelecimentos para os quais ela vende. “Isso acarreta menos movimentação de caminhões, que contribuem com a emissão de poluentes”, lembra Mateus Delalibera.
Com pouco mais de R$ 346 mil de faturamento entre janeiro e novembro de 2020, quando parou de divulgar sua receita, a companhia amealhou R$ 4 milhões de capital semente da SP Ventures e da Capital Lab, entre outros investidores, e mais R$ 4,8 milhões via crowdfunding (os participantes do financiamento coletivo deverão abocanhar, futuramente, quase 17% da empresa).
Para 2022 está prevista uma nova rodada de captação com investidores que mira perto de R$ 80 milhões. É o montante necessário para construir uma nova fazenda, provavelmente nos arredores de São Paulo, com capacidade para produzir 105 toneladas de hortaliças por mês, e para automatizar processos internos. “Com esse salto, teremos a escala e a agilidade necessárias para competir diretamente com os produtores convencionais”, acredita o CTO. Hoje a companhia briga por consumidores no segmento premium. A longo prazo, almeja dispor de mais de 15 fazendas verticais, cada uma delas em uma grande cidade brasileira ou da América Latina.
A verdade é que a tecnologia está transformando um dos ofícios mais antigos de todos, o de fazendeiro, e não só no Brasil. Na França, espera-se que ela possa reverter um quadro que já se mostra preocupante e encontra paralelo em outros cantos do mundo. O país é o “grande celeiro” da União Europeia, respondendo por um quinto de toda a produção agrícola do bloco de 27 nações. Metade de seus agricultores, no entanto, está na faixa dos 50 anos e deverá se aposentar na próxima década. Na falta de substitutos, cerca de 160 mil fazendas, em tese, ficariam ao deus-dará.
Iniciativas para reverter essa situação ganharam destaque recentemente nas páginas do jornal “The New York Times”. Apresentada como o maior campus agrícola do mundo, a Hectar, nos arredores de Paris, é a soma de uma aceleradora de agtechs, de um hub de inovação e de uma escola para quem quer atuar no setor com a ajuda da tecnologia. Inaugurado em 2021, o complexo se espalha por uma área de 600 hectares e ainda dispõe de espaço para coworking e seminários e de uma fazenda que aposta na agricultura orgânica e no pastejo rotativo dinâmico, entre outras iniciativas do gênero.
“Precisamos atrair uma geração de jovens para mudar a agricultura, produzir melhor, com menos custos e mais inteligência”, disse ao “New York Times” um dos fundadores e o principal financiador, o bilionário francês Xavier Niel. “Para fazer isso, temos que tornar a agricultura sexy.” A meta da Hectar é arrebanhar cerca de 2 mil jovens de ambientes urbanos ou rurais a cada ano e capacitá-los para virarem agricultores-empreendedores afiados em convencer investidores e comprometidos com a sustentabilidade.]
Um exemplo do que a Hectar planeja colher com suas iniciativas é a NeoFarm, uma espécie de “fazenda boutique” na ativa desde 2018. Espalhada por cerca de 10 mil m2 na mesma região, tem como propósito produzir hortaliças e afins de maneira sustentável e escoar a produção localmente, para minimizar a pegada de carbono do projeto. “Nossa missão é trazer um modelo de produção ecológico, lucrativo e atraente para as pessoas que trabalham em nossa fazenda”, afirma a companhia em seu site.
Nos Estados Unidos, a alta tecnologia parece ser bem mais utilizada pelo setor agrícola (a junção das duas coisas está sendo chamada, mundo afora, de “agricultura 4.0”). Fundada em 2017, a Bear Flag Robotics serve de prova. Sediada em Newark, na Califórnia, a startup desenvolve tratores autônomos. Ela não fabrica esses veículos, indispensáveis em lavouras de certo porte. Em vez disso, adapta os que já existem com sensores capazes de tornar os motoristas dispensáveis. Ou quase. Na verdade, o sistema desenvolvido demanda um operador sempre a postos, apto a controlar remotamente uma frota inteira.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_63b422c2caee4269b8b34177e8876b93/internal_photos/bs/2021/0/p/tNIv9BT22kmoAyGCiZxg/foto17cul-603-apostas-d8.jpg)
A tecnologia envolvida mantém os veículos sempre em linha reta e faz com que eles retornem no sentido inverso sem deixar nenhum trecho retrabalhado ou descoberto. Ela pode ser embarcada tanto em tratores quanto colheitadeiras e pulverizadores. A precisão prometida para alguns equipamentos, como semeadores, é de quase uma polegada. E todos podem funcionar 24 horas por dia, acelerando a produção.
Já a startup brasileira Yes We Grow nem se enxerga exatamente como uma agtech, mas como uma incentivadora de um estilo de vida. Tirada do papel em 2019, ela vende kits inteligentes para o plantio dentro de casa de hortaliças, ervas, plantas e o que mais der na telha dos compradores. Incluem um sistema autoirrigável que permite que você esqueça de regar por até 25 dias e iluminação própria e automática, para garantir a fotossíntese (a empresa também vende terra, adubo, vasos e acessórios).
“O segmento em que atuamos pode evoluir da mesma maneira que o setor pet, que hoje tem muito mais a ver com um estilo de vida do que com o simples cuidar de cães e gatos”, acredita Rafael Pelosini, de 45 anos, CEO e um dos três fundadores da startup. “Ajudamos nossos clientes a se manter em contato com a natureza e a cultivar plantas na cidade, mas sem precisar pegar a enxada. A agricultura não precisa continuar a ser executada como há 2 mil anos.”
Com uma linha composta por 100 produtos, a companhia terminou o ano de 2021 com um faturamento de mais de R$ 3 milhões. Ao todo são 18 mil clientes, que adquiriram para suas casas e apartamentos 11,5 milhões de mudas. Até aqui a Yes We Grow amealhou R$ 4,5 milhões com investidores e está prestes a anunciar a quarta rodada de captação. Sua sede fica na capital paulista, mas os 20 funcionários estão espalhados pelo Brasil, em esquema de trabalho remoto. “Uma empresa como a nossa, que propõe mudanças comportamentais, não pode exigir que todo mundo fique preso a um escritório em São Paulo”, acrescenta Pelosini.
Segundo ele, uma das explicações para o sucesso da startup e para o interesse dos funcionários em trabalhar nela é a contribuição, por menor que seja, na luta contra o aquecimento global. “Arrisco dizer que as únicas marcas que vão sobreviver a longo prazo são aquelas que têm um propósito legítimo e que estão comprometidas com o planeta e a sociedade”, afirma o CEO.
O intuito de minimizar os impactos no meio ambiente é partilhado por inúmeras das novas agtechs. Razões para isso não faltam. Estudos apontam que o setor agrícola brasileiro, por exemplo, vai conviver com secas quatro vezes mais fortes e frequentes nos próximos anos, como sugerem as registradas em 2021. E convém lembrar que o desmatamento só piora esse quadro. Boa parte da chuva e do vapor d’água que refresca estados como Mato Grosso, Goiás e Tocantins, por exemplo, é fruto da chamada evapotranspiração da Amazônia. “Devastar nossa maior floresta é um tiro no pé, pois é ela, em parte, que alimenta nossas lavouras”, explica Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP e membro do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU.
Como a COP26 deixou bem claro, há alertas ainda mais assustadores. Caso a temperatura planetária suba 2ºC, em média, quase todos os recifes de coral de água quente serão destruídos e o gelo do mar Ártico derreterá inteiramente em pelo menos um verão a cada década, para o desespero da vida selvagem e das comunidades da região. O derretimento de parte da Groenlândia e da Antártica não seria inesperado, elevando o nível do mar em vários metros ao longo dos séculos. Um terço da população mundial ficaria regularmente exposta ao calor severo, o que se traduziria em problemas de saúde e, inevitavelmente, em maior número de mortes relacionadas ao clima.
Com 1,5ºC, o teto almejado pela conferência do clima da ONU, o panorama se mostraria menos apocalíptico, embora ainda grave. Haveria menos riscos de escassez de alimentos e água e diminuiria a ameaça ao crescimento econômico e de extinção para inúmeras espécies. As doenças desencadeadas pela poluição do ar também seriam menos preocupantes. Em algumas regiões do Nordeste brasileiro, no entanto, a temperatura já aumentou 2,4ºC e as chuvas diminuíram 30%. “Precisamos reduzir as emissões de gases do efeito estufa o quanto antes e da maneira mais intensa possível”, roga Artaxo, lembrando que não há sustentabilidade possível com a destruição de ecossistemas como o amazônico.
Formada em pedagogia e políticas sociais, a cearense Priscilla Veras, de 38 anos, resolveu fazer sua parte com a Muda Meu Mundo. Fundada por ela em 2016, a startup conecta redes varejistas a pequenos produtores agrícolas, que ela incentiva a adotar práticas mais sustentáveis e para os quais oferece microcrédito e antecipação de recebíveis. A companhia se encarrega de toda a logística de entregas, ocupando o papel de único atravessador. Com isso, aumenta em cerca de 70% o faturamento dos produtores e dá uma margem de lucro 10% maior para os supermercados e demais varejistas.
Dividida entre Fortaleza e a capital paulista, a empresa hoje trabalha com 180 produtores e 35 lojistas. Para 2022, a meta é saltar para 800 produtores e 150 varejistas. Impulsionada por R$ 600 mil de capital semente, a companhia pretende anunciar em breve uma nova rodada de captação na ordem de R$ 11 milhões. “A startup nasceu dessa pergunta: ‘por que os produtores ganham tão pouco se os alimentos custam tão caro?’”, lembra Veras, que exerce o cargo de CEO da empresa. “Fui atraída para o agronegócio porque ele pode impactar positivamente a sociedade. Acredito que as novas gerações estão se aproximando do setor pelo mesmo motivo.”
Leia a seguir