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TRF3 reverte condenação milionária contra Ambev em caso relacionado à 2ª Guerra
A 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) reverteu uma condenação milionária para que a Ambev pagasse todos os dividendos, juros sobre o capital próprio ou qualquer outra forma de remuneração paga aos acionistas desde 10 de abril de 2012 referentes a 74.211.825 ações nominativas ordinárias da cervejeira que a empresa de navegação alemã F. Laeisz sustenta ser a dona. Estima-se que o valor em disputa atualmente já supere os R$ 500 milhões. A Ambev provisionou R$379,8 milhões devido a este processo.
O imbróglio remonta ao bombardeio do navio brasileiro Taubaté no mar Mediterrâneo por um avião da Luftwaffe, a Força Aérea da Alemanha. Isto porque, depois do ataque, o presidente da República Getúlio Vargas assinou o Decreto-Lei nº 4.166/1942 determinando o bloqueio de bens de todos os súditos do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) para garantir uma eventual reparação a danos causados durante a Segunda Guerra Mundial.
A empresa de navegação alemã F. Laeisz, que transportava insumos para a produção de cervejas da Brahma, passou a investir nas ações da companhia há 118 anos. Mas, com o decreto de 1942, as ações foram tomadas em garantia pela União.
Parte das ações voltou definitivamente para as mãos da F. Laeisz depois de uma decisão favorável no Supremo Tribunal Federal (STF), em 1975, no Recurso Extraordinário 81.834.
Outra parte, mais especificamente 74.211.825 ações ordinárias da Ambev, dona da Brahma, foram redescobertas apenas nos anos 90. A União reivindica as ações para si sob o argumento de que a empresa perdeu o direito de requisitar os papéis pelo decurso do tempo.
A sentença contra a Ambev
A F. Laeisz levou o caso ao Judiciário e pediu a condenação da Ambev para que a cervejaria lhe pague os dividendos a que teria direito. Do outro lado, a empresa brasileira argumenta que paira dúvida sobre a titularidade das ações e, consequentemente, sobre quem é o legítimo credor dos respectivos dividendos.
O juiz Djalma Moreira Gomes, da 25ª Vara Cível Federal de São Paulo, havia entendido, em janeiro de 2020, que os alemães é quem tinham razão e, por isso, condenou a Ambev a pagar todos os dividendos, juros sobre o capital próprio ou qualquer outra forma de remuneração paga aos acionistas desde 10 de abril de 2012 referentes às 74.211.825 ações nominativas ordinárias.
Para o juiz, as alegações da União sobre ser a atual dona das ações parecem “as argumentações que o lobo da fábula de Esopo apresentou ao cordeiro para justificar porque iria devorá-lo. Parece dizer: as ações são minhas, e pronto”.
Segundo o magistrado, o decreto de Getúlio Vargas apenas estabeleceu um gravame – retirado por um decreto posterior – que impedia a venda das ações, de forma que não houve apreensão dos títulos.
Reviravolta na segunda instância
O relator do caso no TRF3, José Carlos Francisco, resumiu assim a disputa judicial: “A parte-autora [a empresa alemã F. Laeisz] concentra sua argumentação na legislação societária (notadamente na Lei nº 6.404/1976), sustentando que as anotações em livros da empresa investida, o comparecimento a reuniões de sócios e outras tarefas correlatas são suficientes para o reconhecimento do direito a dividendos e outros ganhos de acionistas. A União Federal afirma que essas ações da AMBEV lhe pertencem porque foram incorporadas ao patrimônio público no contexto de indenizações e demais medidas reparatórias exigidas de empresas súditas da Alemanha em razão dos gastos diretos e indiretos decorrentes da Segunda Guerra Mundial, não tendo sido reclamadas pela parte-autora em sucessivas oportunidades que foram dadas desde o final do conflito bélico. Já a AMBEV procura posição que nega o pagamento dos dividendos, embora não seja assertiva quanto ao reconhecimento da propriedade das ações”.
Para ele, “a União Federal tem direito aos dividendos e outros ganhos decorrentes de participações societárias, que não devem ser pagos somente considerado o nome do acionista registrado nos documentos da empresa investida. As disposições dos arts. 31, 35, 109 e 205, todos da Lei nº 6.404/1976, devem traduzir aspectos formais e materiais sobre a propriedade de participações societárias, de modo que uma leitura estritamente procedimental perderia de vista o relevante contexto jurídico que levou o Brasil a editar vários atos normativos com propósitos reparatórios e indenizatórios em face dos fatos e dos custos (sobretudo humanos) comprovadamente relacionados à Segunda Guerra Mundial”.
“Não se trata de fazer leituras revanchistas em detrimento da propriedade privada de estrangeiros na pressão do estado de guerra, muito menos de atribuir a pessoas físicas e a empresas estrangeiras o ônus de reparação por atos de seus governantes autoritários ou totalitários, mas de compreender os imperativos do Estado de Direito em seus objetivos elementares materiais, sem apego a formalismos. Admito a importância da anotação do nome do acionista nos registros societários da empresa investida, mas não ao ponto de negar a legítima reparação de guerra à União Federal porque formalmente não foi feita a transferência, para seu nome, de participações societárias que pertenciam à empresa alemã (sem sede ou filial no Brasil)”, escreve o relator.
O magistrado fundamenta que é “notório que o Brasil aderiu aos Aliados nas operações da Segunda Grande Guerra Mundial, combatendo e sendo combatido pelos países que integravam o Eixo. Em atitude comum nessas situações (com muitos outros exemplos anteriores, contemporâneos à época e também posteriores), os países envolvidos no conflito militar aplicaram retaliações mútuas, incluindo bloqueios e expropriações de bens e direitos de empresas e de cidadãos originários de países então inimigos. Essas sanções foram utilizadas para pressionar todas as sociedades a desistirem das medidas de guerra bem como para fazerem frente aos custos de operações bélicas e às reconstruções necessárias, incluindo benefícios pagos aos militares e seus familiares e outros gastos relevantes (muitos até hoje ativos no orçamento brasileiro)”.
O desembargador entende que “houve efetiva transferência da propriedade de bens e direitos de alemães (pessoas jurídicas e pessoas físicas) em favor da União Federal. Essas medidas eram coerentes com as práticas que buscavam desestimular a escalada da Segunda Guerra Mundial, além de suas conhecidas finalidades reparatórias”. E “ao que consta dos autos, com exceção do discutido no RE 81.834/RJ (j. 12/12/1975), e a despeito de múltiplas oportunidades e vários prazos reabertos, em nenhum momento a F. Laeisz fez o devido requerimento para a restituição da totalidade das ações da Cervejaria Bhrama (hoje AMBEV) que foram incorporadas ao patrimônio da União Federal (ou seja, pertencem à União desde 1942)”.
“O fato de os livros societários da Brahma (agora AMBEV) ainda indicarem o nome da F.Laeisz como titular da participação societária controvertida não permite reconhecer que as ações e seus frutos lhe pertencem (notadamente dividendos e bonificações), porque houve anterior transferência de propriedade desses bens para a União Federal, porque não foi pleiteada sua restituição na forma da legislação de regência (a despeito de múltiplas oportunidades), porque não existe anuência implícita do ente estatal para essa restituição, e porque a propriedade do poder público não pode ser usucapida ou apropriada por particulares. E mesmo que não tivesse havido transferência da propriedade em 1942 mas mero bloqueio, a parte-autora perdeu os prazos legais para reclamar as participações societárias em questão”, resume o desembargador José Carlos Francisco.
O entendimento do relator foi acompanhado de forma unânime pelos outros desembargadores da Turma, que também julgaram improcedente o pedido da F. Laeisz. O caso tramita com o número 5020297-24.2018.4.03.6100. Cabe recurso da decisão.
À Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Ambev informou que assinou um acordo com F. Laeisz, visando reduzir o valor total em disputa. A Ambev afirma ter concordado com a correção monetária dos valores e que a empresa alemã assentiu em não incluir a aplicação de juros para ajuste dos dividendos em caso de vitória. Antes do julgamento em segunda instância, a Ambev considerava as chances de derrota no processo possíveis, mas independentemente de quem for considerado o titular legítimo das ações em questão, a empresa afirmou à CVM que já faz a devida contabilização de todos os dividendos relacionados.
Procurados, a Ambev e os escritórios Pinheiro Neto, que defende a F. Laeisz, e Mattos Filho, que defende a cervejaria, não se pronunciaram sobre o assunto.
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