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A polarização que importa
A literatura de cordel é riquíssima e muito criativa. Particularmente, uma obra que me marcou foi “A Peleja do Cérebro com o Coração”, na qual mente e emoção se confrontam como dois repentistas. Nessa obra, o Cérebro é presunçoso, vaidoso de sua inteligência e frieza, claro. Mas, escapou ao autor, Marcus Lucenna, incluir as finanças e os investimentos como qualidades cerebrais. sinto que foi apenas porque ele não se lembrou do argumento.
A Economia Comportamental veio contrapor aquela visão clássica de que as decisões econômicas eram sempre pautadas pela racionalidade, mas é curioso notar que há ainda um sem-fim de ações que tomamos com justificativas plenamente lógicas, mas que são erros de percurso da nossa avaliação: as chamadas Heurísticas.
Como você decide se uma ação está barata?
Heurísticas são atalhos que nosso cérebro toma para tentar simplificar uma decisão que é muito complexa – o que é uma baita vantagem competitiva em termos de economia de energia e foco, mas também pode ser uma armadilha em que entramos sem sequer perceber.
Por exemplo, quando você vai a um supermercado comprar um produto, digamos que seja café. Como você decide qual levar? Provavelmente, em primeiro lugar, algum critério de qualidade vai restringir sua análise a duas ou três marcas… Mas e depois?
Sua decisão se dará, possivelmente, por algum critério de comparação: entre os preços dos concorrentes; entre o preço no mês anterior ou até mesmo entre o preço atual e aquele outro riscado na plaquinha, propositalmente, para que você consiga ter uma referência comparativa.
E nas ações? Será que você está decidindo por comparação?
É muito provável que você avalie, em relação ao preço nas mínimas, o preço médio ou o preço em que você comprou o ativo da última vez. Esse número comparativo é chamado de âncora e pode ser muito forte. Em um estudo nos Estados Unidos, os lances de um leilão foram ancorados aos números de seguridade social dos participantes.
Mas talvez você esteja perguntando agora: “o que tem a ver o número de registro de alguém com o lance em um leilão?”. A resposta é: nada! E é por isso que a Ancoragem é algo muito importante para ter em mente. Usar números como referência para um estudo mais embasado é necessário, mas se prender a preços passados não é uma decisão analítica, por mais que nosso cérebro possa argumentar que sim. À essas horas, o Coração faria troça do deslize bem-intencionado do seu rival.
Já saquei a Ancoragem, o negócio é projetar.
O Cérebro prepotente diria que tem a resposta:
basta olhar o futuro e projetar uma aposta.
Definiria o preço justo e compraria a ação,
mas logo na sequência daria outro tropeção.
O que ele não esperava é o Viés de Projeção.
Temos uma tendência inconveniente de acreditar que o que está acontecendo agora vai se perpetuar no futuro. Um ótimo exemplo disso são as ações da empresa Zoom Video Communications. Em 1º de janeiro de 2020, as ações da companhia custavam US$ 76,30, mas pouco tempo depois o mundo entraria em uma grave pandemia e as reuniões e encontros via streaming cresceriam significativamente em volume. O Zoom seria, então, um dos grandes beneficiados por uma mudança abrupta do mercado.
Em seu auge, as ações superaram os US$ 478, cerca de 526% de alta. No entanto, a pandemia foi controlada, outros competidores ganharam relevância no mercado, o Zoom não conseguiu capturar valor durante essa oportunidade e, hoje, as ações estão custando cerca de US$ 77,50, um número muito próximo a antes da euforia.
O viés de Projeção é outro ponto fraco que o Coração usaria contra o Cérebro – e quando ele se combina à Ancoragem, cria-se um dos efeitos mais perversos na decisão de investimentos: o Efeito Retrovisor.
Entra na mente, mas não no Coração
Qual investidor não sabe que rentabilidade passada não é garantia de retorno futuro?
Mas, mesmo assim, quem não se empolga para investir em um fundo rendendo 400% do CDI? Ou em uma ação que multiplicou por cinco nos últimos meses?
A rentabilidade recente é um número que nossa mente traduz em inúmeras qualidades: competência do gestor, qualidade da ação, lucro rápido, talvez até mesmo segurança (todas irreais, mas geram um conforto cognitivo danado!).
Essa atribuição de características a partir de um ponto de percepção é o Efeito Halo, que acontece em diversos âmbitos, como quando acreditamos que alguém é competente por ter um sorriso simpático.
E o Cérebro perde a peleja?
No final do poema de Marcus Lucenna, Cérebro e Coração se reconhecem um ao outro e entendem que se complementam.
E a solução para escapar da Ancoragem, do Viés de Projeção, do Efeito Halo e do Efeito Retrovisor está em justamente combinar a mente mais analítica e racional à mais criativa e inspiracional.
É necessário usar a criatividade para olhar além das informações que nos são apresentadas e imaginar como seriam os cenários possíveis daqui em diante antes de tomar uma decisão.
Poderia acontecer aquele futuro ditado nos preços, em que o Zoom se consolidaria como uma gigante de tecnologia e líder global em reuniões por Streaming? Claro!
Como também poderia acontecer um futuro em que a pandemia acabaria, parte das empresas voltariam à normalidade, o Zoom perderia os milhares, talvez milhões, de clientes que ganharam em meio a uma circunstância extremamente atípica e essa normalidade se refletiria nos preços.
Apesar desse exercício não nos proporcionar uma resposta objetiva, nos permite ver um equilíbrio diferente do que aquele que se apresenta em uma análise inicialmente fria.
Não importa em qual momento,
No cordel ou nos investimentos,
Pra rimar ou comprar ação só tem uma combinação:
É usar em complemento o Cérebro e o Coração.
Por Gabriel Padovesi, CFP e colunista íon. Artigo originalmente publicado na coluna ‘Sinapses’, no Feed de Notícias do íon Itaú. Para ler este e outros conteúdos, acesse ou baixe o app agora mesmo.
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