‘Investidor-anjo’ dá apoio a startups mesmo na pandemia
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Do capital semente (“seed”) até estrear na bolsa, na semana passada, o Nubank recebeu quase uma dezena de rodadas de investimentos. A injeção inicial, de US$ 2 milhões, da Sequoia Capital e da Kaszek Ventures, em 2013, foi um caso de negócio ligado à inovação que já começou com nomes de peso do universo do “venture capital” (VC). Mas abaixo de aportes assim, há grupos de investidores que fazem o trabalho de formiguinha, na pessoa física, e se engajam junto com os fundadores nos projetos.
O chamado “investidor-anjo” não deixou os empreendedores na mão durante a pandemia. Depois de um freio quando eclodiu a crise sanitária, no início de 2020, o capital voltou a fluir para as companhias ligadas à inovação.
No ano passado, os investimentos da pessoa física em startups chegou a R$ 856 milhões, com uma queda de quase 20%, segundo mapeamento feito pela Anjos do Brasil. Para 2021, as estimativas são de recuperação dos números pré-pandemia, voltando a superar a marca do R$ 1 bilhão. Não há ainda, contudo, estatísticas parciais.
É um pedaço pequeno quando se leva em conta as cifras que o “venture capital” alcançou no Brasil. Dados da Abvcap, que representa o setor, mostram que neste ano, até outubro, os investimentos, em diferentes estágios de novatas, somaram R$ 33,5 bilhões, três vezes mais do que foi movimentado no mesmo período do ano passado. Mas esses são dois sistemas que se comunicam, pois há rodadas mistas, com participação de fundos e de anjos.
Entre as redes mais antigas do país, criada uma década atrás, a Anjos do Brasil ultrapassou a marca de 500 participantes neste ano e fez 26 investimentos, com desembolsos da ordem de R$ 15 milhões — tinha realizado 15 em 2020. Mais do que um grupo de investidores, atua como órgão de fomento e trabalha com políticas públicas, com proposições para a regulamentação, como foi o marco legal das startups, diz a diretora-executiva Maria Rita Spina Bueno.
Durante o biênio da pandemia, ela diz que houve de tudo um pouco. No primeiro momento, entre março e abril de 2020, o investidor-anjo voltou para casa para cuidar tanto da restruturação da vida doméstica quanto do trabalho principal. Foram dois ou três meses em que os investimentos caíram muito, conta a executiva. “Num movimento similar ao do VC,que em geral tem uma característica diferente, todo mundo olhou para a carteira das investidas, para avaliar como ajudar a passarem por aquele momento e a se reorganizar.”
Startups de novo
Absorvidos os primeiros impactos, os anjos voltaram a olhar para as startups e a investir, efetivamente. O lado interessante é que a adaptação para apresentação das teses remotamente abriu geograficamente o leque de empreendimentos avaliados.
Com abrangência nacional, em 22 Estados, um dos desafios era atrair também recursos de anjos de São Paulo para projetos de outras regiões, o que ajuda na expansão comercial das investidas, diz Bueno. “Isso tira uma barreira de entrada porque fazer um ‘pitch’ [apresentação] em São Paulo tem o custo de deslocamento, que é significativo para o empreendedor na fase inicial do negócio.”
A executiva propõe que o anjo esteja presente nos estágios mais iniciais, que participe tanto das captações pequenas, que giram no total algo entre R$ 400 mil, R$ 500 mil, quanto daqueles projetos um passo à frente, que já conseguem fazer rodadas maiores, de R$ 1 milhão a R$ 3 milhões, ou entre R$ 8 milhões a R$ 10 milhões, como se viu recentemente.
“O anjo só tem retorno financeiro construindo portfólio”, afirma Bueno. Mas mais do que rentabilidade, ela diz que o envolvimento desse investidor, no Brasil ou lá fora, tem a ver com a busca de um valor intangível: conhecer melhor o mundo da inovação, o que em geral traz conhecimento para a própria carreira, e devolver algum benefício para a sociedade.
Fundada em 2019, a BR Angels rapidamente alcançou 200 associados, a maior parte executivos do alto escalão de empresas, que entram nos negócios nascentes na pessoa física. Há nomes como Renato Franklin, CEO da Movida, Mônica Herrero, que comandou a Stefanini Brasil, e Affonso Nina, ex-CEO e membro do conselho da Sonda, de serviços de tecnologia.
Segundo o fundador e CEO da rede, Orlando Cintra, a estimativa é fechar o ano com R$ 65 milhões em capital comprometido para aportes em startups. “Quando veio a pandemia eu pensei que ninguém ia querer investir com o desemprego crescendo e a economia derretendo. Mas foi exatamente ao contrário.”
Com apresentações dos projetos — os chamados “pitch day” — virtuais, os investidores se engajaram mais. “Isso, no auge da pandemia. Acho que o mundo corporativo, a economia real, estava tudo tão complicado, com fechamento de fronteiras e da logística, que olhando para startups, no pitch day, parecia uma forma de se desligar falando de inovação, olhando para o futuro”, afirma Cintra.
A BR Angels investiu em 15 startups e já saiu de um dos negócios, da Chiligum Creatives, plataforma de automação criativa para finalização de artes, vendida para a VidMob. A novata recebeu R$ 2 milhões e, em menos de um ano e meio, com a entrada do investidor estratégico, já proporciona retorno para quem deu o suporte inicial. Cintra diz que por contrato de confidencialidade não pode abrir a rentabilidade do investimento.
Prazo dos investimentos
Esse prazo curto é, contudo, uma exceção no universo dos investimentos anjo. Em geral, os projetos levam pelo menos cinco anos para maturar. Um retorno de cinco vezes o capital já é considerado bom, mas há casos em que isso se multiplica em 30 vezes, 100, 150 vezes, exemplifica Cintra.
No Brasil, o sucesso de negócios como 99, Loggi ou Nubank, que rapidamente se tornaram “unicórnios” (com avaliação acima de US$ 1 bilhão), ajudam a colocar holofotes sobre projetos em estágio inicial. O Nubank, ao estrear suas ações na bolsa de Nova York e os BDRs na B3, é o caso mais emblemático recente, alcançando capitalização de US$ 41,5 bilhões no IPO e com alta de quase 15% no primeiro dia de negociação.
Mas nem todos os investimentos vingam. Cintra diz que, numa carteira de startups, o anjo tem que estar em pelo menos 20 ou 30 negócios, porque 20% a 30% deles vão ficar pelo caminho, 10% a 20% vão ter sucesso e entregar um múltiplo superior, e haverá um miolo em que praticamente se empata o capital. O desafio é quebrar esses percentuais.
Ele vê o segmento se popularizar na onda de programas de TV como o “Shark Tank Brasil”, da Sony. “O outro lado disso é que esse não é um investimento em bolsa, um criptoativo, bitcoin, que vai dar 300%, não é assim. O investidor tem que entender no que está entrando porque a liquidez é outra.”
Vitor Kawamura, presidente da Insper Angels, formada por ex-alunos da faculdade de negócios, observou aumento dos aportes de quem participa de grupos de anjos, mas um decréscimo da pessoa física solo. Com 450 participantes, a rede, criada em 2018, fez só neste ano 50% do seu investimento total.
Na carteira há desde companhias ligadas a educação, saúde e agronegócio até arquitetura e decoração. O executivo explica que o comitê de investimentos busca aqueles negócios em que o grupo tem mais condições de ajudar, seja na escala comercial, com algum conhecimento estratégico, seja na hora de apoiar novas rodadas de captação. A Insper Angels avalia projetos entre R$ 250 mil e R$ 500 mil, mas já entrou em captações de R$ 2 milhões a R$ 3 milhões, compondo parte do cheque.
Esse é um segmento, diz Kawamura, muito colaborativo, os negócios e as boas práticas e até a validação do “valuation” podem ser compartilhados — só ele participa de cinco redes. O executivo diz que os grupos de anjos não concorrem com os fundos de VC, pelo contrário, há parcerias com gestoras que privilegiam negócios “early stage”, que indicam os projetos. Ele cita, que meses atrás, um aporte de R$ 2,5 milhões liderado por um fundo contou com seis redes de investidores anjo.
Oren Pinsky, gestor de fundos de fundos de venture capital da suíça Iteram Capital, faz parte da rede da Columbia Angels, ligada à Universidade de Columbia. Embora não invista como anjo, para evitar qualquer tipo de conflito, ele observa o segmento crescer junto com a mudança do perfil do empreendedor brasileiro. Engenheiro de formação, diz que no no passado era comum universitários buscarem posições na iniciativa privada ou no governo, as melhores cabeças estavam na indústria tradicional.
Histórias inspiradoras
“Não havia exemplos de pessoas que tomavam risco de empreendedor sendo bem remuneradas. Hoje, todos os dias se vê histórias que inspiram, empreender se tornou uma opção desejável”, diz. “Quem vem agora oferecer uma oportunidade de investimento é melhor qualificado.”
Pinsky também vê o segmento ganhar tração pela multiplicação de plataformas de crowdfunding. Além disso, empreendedores que tiveram acesso a liquidez porque venderam seus negócios nos últimos dois, três anos, realimentam o sistema, investindo em outras novatas. “Quem montou um negócio sabe o quão difícil é o começo da estrada, sabe avaliar se as as pessoas são ou não preparadas.”
Bueno, da Anjos do Brasil, destaca que o aumento do investimento em startup não pode perder de vista o engajamento para negócios sustentáveis no longo prazo. “Têm, de fato, que melhorar a vida das pessoas, ampliar o emprego e a renda, a diversidade, o ecossistema não pode ser só de homens brancos.”
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